Ao nosso tempo

Escrito por Márcio Dornelles , marcio.dornelles@svm.com.br
Legenda: Entre uma braçada e outra, vamos trocando as nossas águas, lavando as roupas surradas nas pedras do rio, batizando nossas crianças, oferendando aos nossos protetores.
Foto: Natinho Rodrigues

Estamos no encontro das águas do tempo, recém largados de ondas altas, arredias e salgadas. E tantas vidas nossas foram tragadas pela maré do ano agora encerrado e não estão aqui, por ordem do tempo. Ele, dono do passar das coisas, ordena e ordena o lugar de cada mínimo instante.

Aos enclausurados no próprio território, agarrados a telas de proteção de apartamentos ou crostados em janelas baixas, o tempo se arrastou insolente, preguiçoso. Foi o mesmo atrevimento para milhares de pessoas à espera de notícias sobre um familiar ou amigo internado, sob o drama do não saber.

Mas, aos pacientes, a ampulheta foi impiedosa, grosseira. Pedia-se mais um tantinho de paciência para o corpo responder ao tratamento, para os pulmões recuperarem poder, para a vida respirar. Enquanto isso e enquanto todas as outras grandezas, o quieto. Às vezes, aposto que o tempo e o silêncio são irmãos, a equilibrar o inevitável.

Milhares fomos os privilegiados com teto, tecido, tudo, tartarugueando entre os cômodos, guardando as horas em gavetas, sofás, livros e panelas. Nós represamos os não vividos, exatamente como isto, algo que não foi, ficou de ser e cochilou na esquina, esqueceu de aparecer. E ficamos congelados, com as paredes vazias na retina, com o sol lembrando da vida e a noite flertando com a morte; ou com a noite-amanhã sendo a esperança de um hoje de caos.

Ao mesmo tempo - e aí nos deparamos com a ironia de viver -, tempo sobrou para um olhar mais atento ao, até então, invisível. Pequenos dias dentro do dia ganharam mais valor. Aquela lembrança de abraço apertado, de olhar trocado, de beijo bom. No entanto, tudo é luxo, tudo é excesso, tudo é demais, não podemos esquecer. Quantas não foram as famílias sem nada, acostumadas ao relento do desprezo? Um ano de extremos.

Agarro-me sempre às palavras de Raduan Nassar, em Lavoura Arcaica (1975), quando ousa dançar com a eternidade.

"O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é, contudo, nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; o tempo está em tudo", massacra o autor.

É o maior tesouro e o melhor alimento. E arremata: "O equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é;  pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas".

Já Belchior, que nos deixou noutros tempos de descrença, na música Pequeno Mapa do Tempo, nos ameaça com uma "faca de ponta e meu punhal que corta, e o fantasma escondido no porão". É, Bel, o tempo andou mexendo com a gente, sim. E mais do que antes, mais do que sempre, é um fantasma no porão. Para a nossa sorte, também há cores na varanda para afugentar as sombras, de braços e alma abertos para o novo que seja, mesmo, de verdade, novo.

Entre uma braçada e outra, vamos trocando as nossas águas, lavando as roupas surradas nas pedras do rio, batizando nossas crianças, oferendando aos nossos protetores. Estamos aqui, eu, você, a costureira Lúcia, o vendedor ambulante de lanches Gibril, a farmacêutica Tatiana, o médico Roberto, a cabeleireira Sinara, o frentista João, o flanelinha Nonato, o aposentado Flávio, a dona de casa Maria, o porteiro Luciano, e Lúcia, e Rodrigo, e Fabrício, e Bárbara, e Cristiano, e Grabriela, e Moza, e Karine, e Sandra, e Wanderlan, e Jéssica, e Sara, e Junior... e todos.

Somos todos o próprio tempo: arrastado ou corrido; represado ou vivido; amado ou sofrido. E agora, redesenhado, avisa Cecília Meireles, no poema Reinvenção: "Porque a vida, a vida, a vida... a vida só é possível reinventada". 

O que faremos com nosso próximo tempo?

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