Nos últimos seis anos, pouco mais de 14 mil filhotes da espécie tartaruga-de-pente (Eretmochelys imbricata) nasceram na faixa litorânea de Fortaleza e se lançaram ao mar. São, em média, 198 tartarugas por mês. Número que representa esperança da sobrevivência dessa espécie ameaçada de extinção.
Ma, o que explica essa grande atração desses répteis pelas praias cearenses? E, diante de um número tão alto desse animais ameaçados, há políticas públicas eficazes para sua proteção? Quais pontos precisam avançar ou serem criados? O Diário do Nordeste conversou com especialistas da área ambiental e traçou um Raio-X sobre o cenário desses animais marinhos no Ceará.
Para que 14 mil filhotes nascessem nas praias de Fortaleza - com destaque para Sabiaguaba e Praia do Futuro, os dois principaispontos escolhidos por esses animais no Estado - um ambiente propício precisou existir para que as tartarugas optassem por desovar aqui.
Ambientalistas detalham que uma soma de fatores contribui para que a orla de Fortaleza, seja um reduto ideal para as tartarugas.
A bióloga e membro do Instituto Verdeluz, Liana Queiroz, explica que as "nossas praias" reúnem os principais elementos para conferir um ambiente propício não só para desova, mas para alimentação desses animais.
"Tartarugas gostam de zona costeira arenosa, como retaguarda de dunas e que estejam livres de inundações pela maré alta. Ter fácil acesso pelo mar e temperatura adequada para o desenvolvimento dos ovos também são pontos-chaves. Todos esses favores coexistem em praias da Capital, com destaque para a do Futuro e Sabiaguaba", ilustra Liana.
A oceanógrafa e Mestra em Engenharia Costeira e Oceânica, Larissa Luana Lopes Lima, lembra ainda que muitas dessas praias possuem disponibilidade de alimento, como algas que ficam fixadas nos costões rochosos do litoral.
Com esse mix de elementos naturais, a bióloga Liana Queiroz acrescenta que essas praias são usadas não somente para desovar, mas para alimentação, principalmente da tartaruga verde. Apesar desse cenário aparentemente 'perfeito' para esses animais, Liana ressalta que elas não fazem morada no Ceará.
As tartarugas marinhas são espécies migratórias, eu gosto de dizer que o Ceará é um Hub de tartarugas, pois seria aqui uma das últimas praias que elas usam antes de migrar, ou a primeira a chegar quando voltam, sendo assim importante para o descanso e alimentação das espécies"
Mas e em outras praias cearenses, há presença das tartarugas ou é de exclusividade de Fortaleza? A representante do Instituto Verde Luz diz não existir uma resposta concreta para esta indagação. Segundo explica, há poucos dados sobre os locais preferidos desses animais para desova ou se alimentação no Ceara.
Larissa Lopes compartilha da mesma crítica e diz que, sem monitoramento contínuo de toda extensão do litoral cearense, "não é possível afirmar se há maior incidência do lado oeste ou leste do litoral". Contudo, na avaliação de Liana, é provável que outras praias as recebem, uma vez que "todas que tenham essas características já mencionadas são potencialmente receptoras das tartarugas marinhas".
Em 2014, o Verdeluz começou a fazer registros, em Fortaleza para localizar um padrão para desova e alimentação. Após alguns anos de estudos, observou-se que a Sabiaguaba e Praia do Futuro são as áreas prioritárias.
Carência de estudos e políticas
E em relação as outras praias, porque não é feito a mesma análise? Para Liana, este seria o cenário perfeito, mas para que isso aconteça é necessário investimento e criação de políticas públicas efetivas, o que inexiste atualmente. "Não temos boas políticas no Ceará", critica a bióloga.
A oceanógrafa Larissa Lopes concorda. Para ela, "é preciso investimento do poder público tanto em ações voltadas à educação ambiental para conscientização da população em geral sobre a importância ecológica das tartarugas marinhas, e sua vulnerabilidade no ambiente marinho, como investimento em monitoramentos contínuos nas praias do Estado".
Esse investimento viabilizaria identificar onde há maior número de registros de espécies e ninhos, e "consequentemente fazer o acompanhamento adequado para preservação das espécies que frequentam o litoral".
Como agravante, observa Liana Queiroz, o Ceará sequer é reconhecido como área de desova desses animais. "Devido à falta de estudos, o Projeto Tamar só classifica o Estado como área de desova ocasional, o que hoje, destoa da realidade, pois já sabemos que aqui é uma área importante", alerta.
Sem esse reconhecimento, o Ceará fica excluso da execução de uma série de políticas públicas existentes, mas que não se aplica a áreas classificadas como desova ocasional. "Precisamos, primeiro, ampliar esses estudos e reconhecer [o Estado] como área de desova, principalmente da tartaruga-de-pente, que está ameaçada de extinção".
Com essa inclusão, pontos aplicados em outras localidades passariam a vigorar no Ceará, como o diferenciamento da circulação de veículos em áreas de desova; a regulamentação também diferenciada da fotopulição, que é a iluminação artificial em praias em áreas de desova e que acaba interferindo o nascimento dos filhotes; e o licenciamento de empreendimentos em áreas de desova.
"Com o reconhecimento a gente ganharia amplitude dessas políticas que já existem, mas que não se aplicam ao Ceará", reforça Liana.
O Secretário do Meio Ambiente (Sema) do Ceará, Artur Bruno, discorda. Ele considera que há políticas públicas voltadas à preservação dessas espécies e cita como exemplo a construção de um quarentenário para tartarugas, no Ceará. Este equipamento, conforme explica o titular, será gerido pela Secretaria do Meio Ambiente do Ceará (Sema) e pelo Instituto de Ciências do Mar (Labomar).
O primeiro prazo para que o quarentenário fosse inuagurado, era ao longo do primeiro semestre deste ano. Contudo, Artur Bruno justificou dizendo que a "pandemia atrasou projetos de todos os orgaos públicos e de empresas privadas e os prazos acabaram sendo dilatados".
A nova previsão para funcionamento do equipamento é para os próximo 60 dias. "A empresa vencedora da licitação já assinou contrato e as obras começam na próxima semana. Elas devem durar, no máximo 60 dias", garantiu Artur. Ele não especificou o montante que será gasto.
O local terá biólogos, veterinários, veículos e laboratórios para atendimentos de emergência às tartarugas marinhas que encalham no Ceará. Só nos cinco primeiros meses de 2021, 50 tartarugas encalharam, número 56% maior que o registrado nos primeiros seis meses de 2020.
"Vamos acabar com o absurdo de ter que levar esses animais para animais encalhados para o Rio Grande do Norte, onde está o centro de cuidados mais próximo. Com o quarentenário, tudo será realizado aqui e as chances de sobrevivências aumentarão". acrescentou o titular da Sema.
Segundo o Instituto Verdeluz, de 2015 para cá, mais de 300 encalhes foram registrados, no Estado. Na existência de locais apropriados para elas, como quarentenários, o índice de sobrevivência seria maior. A expectativa é reduzir o número de mortes e o sofrimento dos animais que precisam de cuidados especializados
"[O quarentenário] será fundamental para diminuir as taxas de mortalidade das tartarugas que encalham viva e depois vão a óbito. Algumas vezes demora muito tempo para que sejam atendidas. Isso dificulta a possibilidade de recuperação", avalia a engenheira de pesca e Professora do curso de Oceanografia do Labomar-UFC, Caroline Vieira Feitosa
Ela detalha que o quarentenário é como se fosse a emergência de hospital. "Neles as tartarugas irão receber os primeiros atendimentos e, dependendo do caso, seguem para um centro de reabilitação". O quarentenário ficará no Centro de Estudos Ambientais Costeiros (Ceac), do Labomar da Universidade Federal do Ceará (UFC), localizado no Eusébio.
Conscientização e lixo plástico: dois pontos crucias
Queiroz também destaca a importância da conscientização dos homens do mar. Ela relata a preocupação com a 'pesca fantasma' que acaba impactando as tartarugas. Essa denominação é dada devido às redes, linhas e armações de pesca, que são perdidas ou descartadas no mar levando ameaça à vida marinha.
"Deve-se existir um trabalho conjunto com os pescadores para externar os riscos dos restos de malhas de pesca ao mar. Muitos já são conscientes, mas é preciso avançar", avalia. Outra questão pontuada por Liana é o uso dos plásticos de utilização única, como os canudinhos.
Na concepção da oceanógrafa, o lixo é o principal “predador” desses animais. "É preciso apostar muito em educação ambiental da sociedade em geral, principalmente das crianças, que serão os adultos de amanhã. As pessoas tendem a cuidar somente do que conhecem", diz Larissa.
É preciso que haja uma conscientização a ponto de provocar uma mudança de hábitos na sociedade, como diminuir ou deixar de utilizar produtos plásticos, além, óbvio, de uma gestão de resíduos pública adequada. Um dos maiores problemas ambientais é a má gestão dos resíduos.
Ameaçadas
A ausência de políticas citada por Liana e Larissa Luana Lopes, torna-se ainda mais grave e urgente quando observado que das cinco espécies de tartarugas marinhas encontradas no Ceará, todas estão ameaçadas de extinção, segundo critérios do Livro Vermelho da Fauna Brasileira Ameaçada de extinção (ICMBio/MMA) e da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).
- Tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta),
- Tartaruga- de- pente (Eretmochelys imbricata),
- Tartaruga-oliva (Lepidochelys olivacea),
- Tartaruga-verde (Chelonia mydas),
- Tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea).
Artur Bruno reforça que, além do quarentenário, o Labomar está desenvolvendo um aplicativo para acelerar o resgate de animais encalhados.
"Ele [o app] vai ser divulgado nas 20 cidades praianas e com ocorrência de desova. A pessoa que observar alguma tartuga lesionada poderá comunicar imediatamente a Polícia Ambiental e Corpo de Bombeiro para que ela possa ser tratada rapidamente", informa.
Múltiplas espécies beneficiadas
Avançar nas políticas públicas vai impactar positivamente não apenas as tartarugas marinhas. Quando uma espécie é beneficiada, várias outras são afetadas também, o chamado beneficiamento em cadeia.
Essa rede é importante pois, no litoral cearense, há várias outras espécies ameaçadas de extinção, como Boto-cinza (Sotalia guianensis), Peixe-boi (Trichechus manatus) e Peixe-serra (Pristis pectinata) e muitas outras espécies "mas que são menos carismáticas e chamam menos atenção", acrescenta Liana.
Então, para que esses animais sejam beneficiados e tenham a devida proteção, ambientalistas pleiteiam políticas para a chamada espécie guarda-chuva, uma que tenha maior apelo, como é o caso da tartaruga marinha.
"Quando você protege uma espécie como essa, uma cadeia de beneficiamento para outras espécies menos conhecidas é criada. Se você protege um local focando na tartaruga, muitas outras se beneficiam, já que vivem no mesmo ambiente", conclui.