Ameaças ao SUS: os impactos às populações rural e periférica do Ceará

Em um estado onde mais de 80% das pessoas dependem exclusivamente do SUS para acesso à saúde, especialistas e gestores alertam que enfraquecimento afetaria a todas as classes sociais - sobretudo as mais vulneráveis

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
A estimativa, é de que cerca de 7,7 milhões de cearenses dependem exclusivamente do SUS
Legenda: A estimativa, é de que cerca de 7,7 milhões de cearenses dependem exclusivamente do SUS
Foto: ELIZANGELA SANTOS

A escrita destas linhas só é possível, em parte, porque o Sistema Único de Saúde (SUS) existe. A repórter, assim como cerca de 100 mil cearenses todos os anos, nasceu em hospital público. O SUS, aliás, atravessa a vida de brasileiros do nascimento à morte, sendo vital principalmente para as populações rurais e periféricas do Ceará - as mais ameaçadas pelo progressivo enfraquecimento dos serviços e dos repasses financeiros à saúde pública brasileira, como apontam especialistas e gestores públicos do Estado.

No Ceará, apenas 15,1% da população têm plano médico privado e 10,6% têm plano odontológico, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2019, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A estimativa, então, é que aproximadamente 7,7 milhões de cearenses dependam exclusivamente do SUS para ter acesso a um direito básico e fundamental. Outro dado da PNS é sintomático: mais da metade (51,1%) de quem vive aqui tem pelo menos uma doença crônica, exigindo acompanhamento constante.

Num cenário como este, a necessidade de fortalecer o sistema público é palpável - mas o que tem sido visto nos últimos anos é o contrário, como avalia Rocineide Silva, professora do curso de Enfermagem da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e doutora em Saúde Coletiva. "A atenção básica vive um contexto de desfinanciamento. Antes, tínhamos um subfinanciamento, mas desde 2016 as perdas são infinitas. E não ter olhos para isso é ameaçador", alerta.

A reportagem solicitou ao Ministério da Saúde os valores dos repasses federais ao Ceará entre 2017 e 2020, e quanto do valor de cada ano foi destinado à Atenção Básica. Pedimos também um posicionamento sobre o "desfinanciamento" citado, mas não obtivemos resposta até o fechamento desta edição.

Caio Cavalcanti, coordenador de Políticas Intersetoriais da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), acrescenta que "o problema do SUS é tanto financiamento como gestão". "O SUS vive um subfinanciamento crônico, porque os gastos com ele são menores do que os gastos privados com saúde, e ainda precisam ser melhor empregados. E imagine essa pandemia sem o SUS, num Estado com desigualdades tão grandes, de toda natureza?", questiona.

Um dos efeitos disso, segundo Rocineide, é a vulnerabilização de populações com menor renda, que repercute em todo o sistema. "Sem atenção básica, tudo o que era controlado lá, como doenças cardiovasculares, hipertensão e obesidade, por exemplo, fica prejudicado. Muitas internações em leitos de UTI, hoje, seriam evitadas se houvesse planejamento do cuidado desde a base", aponta, acrescentando o efeito potencializador da pandemia nessa problemática.

"Outra ameaça é essa luta sobre a permanência do auxílio emergencial: se ele acabar, teremos muitas outras mortes, porque, além da Covid, a insegurança alimentar e as questões econômicas também incidem diretamente sobre os serviços do SUS", pontua a doutora em Saúde Coletiva, salientando que moradores do campo e das periferias, cujas necessidades "passaram a ser enxergadas pelo SUS", são profundamente afetados quando a política de saúde pública não funciona.

"Se esse sistema acabar, teremos a dizimação dos povos camponeses e periféricos. Esses rostos têm cor e raça: são os negros que habitam as periferias de Fortaleza e são dependentes do SUS, que numa emergência acessam as UPAs. São os motoqueiros que entregam comida, que sofrem acidentes todo dia, e a própria fome os persegue. São as pessoas que estão em situação de rua, as pretas, as mulheres que cuidam dos seus filhos. Todos estão ameaçados", estima a professora.

Retrocesso

Nesse sentido, Caio Cavalcanti adiciona que enfraquecer o SUS é retroceder. "Quem tinha acesso à assistência médica era quem tinha carteira assinada, e, com o sistema único, milhões que estavam à margem, como as pessoas pobres, sem emprego, foram incluídas. Ele representa a maior política social que já tivemos no Brasil, é uma vitória popular gigantesca, porque não foi uma iniciativa federal".

Sayonara Cidade, secretária de Saúde do município de Cedro e presidente do Conselho das Secretarias Municipais de Saúde do Ceará (Cosems), reforça os riscos da perda de abrangência do SUS ao afirmar que "a população não suportaria viver sem ele". Ela aponta que, "do programa de vacinas ao de transplantes, o mundo observa o nosso sistema", mas que a desvalorização dele começa pela própria população, que o vê de forma "pejorativa". "Temos um serviço excelente, mas a demanda é infinitamente superior à oferta, porque nosso País é imenso. E o problema é esse: se você atende 90%, os 10% que ficam fora têm um apelo social muito forte, porque são vidas. Além disso, o SUS não é gratuito, é pago com impostos, é uma devolução. Quando alguém fica de fora, esse alguém sofre, e o sistema sofre também", lamenta.

A gestora pública pontua também que o sistema atravessa o cotidiano de todas as classes socioeconômicas, já que "cada coisa que comemos é vistoriada por ela; o creme dental que usamos passou pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), assim como a água que bebemos e com que lavamos as mãos". Entretanto, reconhece que, sobretudo no contexto do Ceará, "as populações de baixa renda e a rural, mais sofridas, seriam as mais prejudicadas".

Dentro do SUS, duas das áreas mais afetadas hoje, como observa a presidente do Cosems, são a formação continuada de profissionais, "porque temos qualificado nosso pessoal de uma forma pontual, fora dos serviços, sem que haja realmente uma mudança na realidade dos atendimentos"; e a saúde mental, "que precisa de um olhar urgente, pois abrange sofrimentos e descompassos muito grandes".

Esta última entrou em discussão recentemente após a revista Época obter acesso a documento do Governo Federal com uma lista de cerca de 100 portarias sobre saúde mental, editadas entre 1991 e 2014, a serem revogadas, o que levaria ao encerramento de vários programas do SUS. O Ministério da Saúde, em resposta, afirmou que a ideia é promover uma reforma, porque várias normativas estariam "obsoletas".

O psiquiatra Joel Porfírio, que atua no Hospital de Saúde Mental de Messejana, em Fortaleza, analisa que os riscos à área vão além do subfinanciamento já existente. "Antes do SUS, não havia lugar de atendimento para alguém em crise. Se a pessoa fosse internada, além do modelo de internação impróprio, ela não tinha onde ser acompanhada quando tinha alta. Não só na saúde mental, mas em outras doenças crônicas. Nosso maior risco é perder essa estrutura que faz uma grande diferença", frisa.

O médico salienta, ainda, que a desassistência dos serviços públicos especializados - não só de saúde mental, mas de todo o resto - seria "gravíssima" e sobrecarregaria a atenção primária e as UPAs, "que não foram desenhadas pra isso". "A tendência de maior dependência do SUS, com a crise até anterior à pandemia, é grande. E no Ceará já temos falta de leitos psiquiátricos em hospitais gerais, que reduziriam o tempo de internação, e Caps insuficientes. Mas isso já é muito melhor que antes, que não tinha nada", lembra.

Iniciativas do Governo Federal nos últimos anos têm levantado discussões sobre o enfraquecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Pesquisadores e gestores públicos apontam riscos à população do Ceará

Foto: elzângela santos

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