Alunos da rede pública relatam desafios gerados pela falta de acesso ao ensino remoto

Preocupações com o ano escolar deixam estudantes aflitos mesmo no período de férias. Condições na volta às aulas também é motivo de dúvidas entre eles.

Escrito por Redação ,
Laís estudando para o Enem
Legenda: Laís estudando para o Enem
Foto: Arquivo pessoal

“Eu já pensei em desistir várias vezes esse ano”. Esse é o relato de Bruna Pereira, 18, aluna do 3º ano do ensino médio da Escola de Ensino Fundamental e Médio Santo Amaro, localizada no bairro Bom Jardim. Usando o celular emprestado por uma amiga e a internet da tia que mora ao lado da sua casa, a adolescente relata dificuldades para acompanhar os conteúdos passados pelos professores durante o ensino remoto. A modalidade foi introduzida no ano letivo de 2020 devido ao isolamento social necessário para evitar o contágio pelo coronavírus. A adaptação do primeiro semestre do ano escolar ao modelo resultou em desafios para os estudantes. 

Com internet limitada, aparelhos emprestados e falta de um ambiente propício para estudar, os jovens revelam preocupação com a assimilação de conteúdos e com o futuro dos estudos. A continuação das atividades online na volta às aulas do segundo semestre, mesmo durante as férias escolares vividas em julho, ainda deixam os alunos incertos. 

Assim como diversos outros alunos da escola, Bruna tentava conciliar os estudos com o trabalho. Para ela, essa realidade afeta ainda mais quem tenta estudar de forma remota neste ano. As atividades passadas pelos professores acumularam no tempo que passou sem celular, antes da amiga conceder o aparelho para que ela voltasse a estudar. Com isso, Bruna acredita que deve ficar de recuperação, mesmo tendo conseguido aumentar notas no último bimestre antes das férias. “É muito difícil aprender algo assim sem ter a sala de aula para você tirar a dúvida”. A ansiedade com a escola, que já era presente, aumentou, segundo a estudante. A vontade de fazer o Exame Nacional do Ensino Médio neste ano ainda persiste, porém o medo de não conseguir nota boa na prova também.

Sara Barros Cardoso, 16, percebe a necessidade de estar em casa para evitar o contágio, mas acredita que deveria ser disponibilizado um pacote de dados para os alunos. A estudante do 2º ano da escola Escola de Ensino Médio em Tempo Integral Presidente Castelo Branco e moradora da cidade de Maracanaú, na Região Metropolitana da Capital, passou um mês sem ter acesso a internet em casa. “É bom pelo ponto de estar se prevenindo, mas vai ser ruim porque a gente não vai conseguir aprender. Ano que vem a gente vai precisar do ensino desse ano. Em vez de focar no Enem, a gente vai ter que ficar estudando coisas desse ano que a gente não conseguiu aprender”.

Agora de férias, Sara tenta desafogar a quantidade de tarefas que deixou de entregar durante o semestre. Ela explica que conseguia ter acesso aos conteúdos enviados pelo WhatsApp, mas aulas colocadas no YouTube ou no blog da escola não carregavam. “Se conectar, assiste uma aula e o resto do mês não assiste mais”, fala sobre a dificuldade de utilizar apenas o 3G para acompanhar as atividades online. Isso acarretava, muitas vezes, na aluna não ter disponível a explicação dos professores, apenas as tarefas. 

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Solidariedade entre colegas

Cumprindo o papel de líder de sala e membro do grêmio da escola, a aluna Laís Souza Leite, 15, escutou e buscou soluções para os relatos de alunos que não tinham internet e aparelhos para acessar as atividades ou que não conseguiam conciliar o trabalho com os estudos. Ela também estuda na EEMTI Presidente Castelo Branco. Quem tinha boa conexão se juntou para ajudar os que não se adaptaram ao modelo de ensino vigente. 

Com isso, foi criado um podcast para repassar as matérias aos alunos em forma de áudio. Além disso, foi feito um acordo com os professores para que estudantes que trabalham e não tinham como acompanhar as atividades tivessem maneiras alternativas de serem avaliados. Os alunos também ficaram responsáveis por disponibilizar atividades por qualquer rede social que os colegas teriam acesso, como o Instagram. “Muitos chegavam pra mim dizendo que não estavam conseguindo entender a matéria e que o fato de não ter acesso tava piorando isso”, diz.

A menina reconhece que o trabalho não foi fácil, sendo preciso esforço para manter o bem-estar psicológico. “A gente fica preocupado com a gente, porque não tá conseguindo assimilar a matéria, fica aflito com os professores, porque sabe que eles estão dando o melhor de si e não tá sendo bom o suficiente por conta desse modelo, fica vendo e recebendo a todo momento mensagens de alunos que dizem que não estão conseguindo, preocupados com o Enem e o conteúdo. Isso desgasta muito a saúde mental”. Devido a esse esgotamento dos estudantes, Laís diz que acha difícil conseguir “colocar toda a dificuldade e déficit em dia” ainda neste ano.

Ensino híbrido também tem desafios

Ainda sem data para começar a ser implementado, o ensino híbrido consta como uma das soluções da Secretaria da Educação do Governo do Ceará (Seduc) para permitir a volta parcial das aulas presenciais. Prioridade para alunos do 3ª ano do ensino médio e para os que não tiveram acesso ao ensino remoto, revisão de conteúdos do primeiro semestre e mesclagem entre atividades na sala de aula e online à distância são previstas no plano de retomada da Pasta. O modelo também deve ser o escolhido pelas escolas particulares do Estado. 

“As escolas da rede pública estadual estão de férias. E logo que as atividades presenciais retornem, o jovem que não teve a oportunidade de vivenciar essas atividades será acompanhado para que prossiga com sucesso em sua aprendizagem”, declara a secretaria por meio de nota quando questionada pela reportagem sobre o que será feito para a inclusão dos alunos que não participaram do ensino remoto. A Seduc também afirmou que não é possível confirmar o número de estudantes que estão neste grupo devido ao período de férias. O plano de retomada, que ainda é discutido, deve ser avaliado pela comunidade escolar antes de ser posto em prática, segundo a secretaria. 

Para Laís, o ensino híbrido é o único modelo possível no momento. O apoio presencial do professor e dos outros colegas, mesmo que não seja diário, será importante para ajudar os alunos, segundo ela. Mesmo assim, ela acredita que as dificuldades dos colegas que foram intensificadas na pandemia continuarão desafiadora. “Foi um agravante da desigualdade social. A escola pública sempre foi abaixo da particular, não por questão de ensino, de qualidade dos alunos ou educadores, mas por conta dos meios”, opina. Ela teme que os estudantes da rede pública tenham menos acesso a universidade e ao mercado de trabalho devido aos problemas vividos neste ano. 

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“As presenciais todo mundo vai conseguir ir e as que não são nem todo mundo vai conseguir assistir”, considera Sara. A opinião da aluna é também a do doutor em educação Marco Aurélio Patrício. O especialista defende a funcionalidade do modelo híbrido, no entanto acredita que ele só será justo se todos os alunos tiverem “igualdade de acesso aos mecanismos necessários”. 

“Enquanto o aluno não tiver acesso a tecnologia para que ele possa, no sistema híbrido, usufruir da parte à distância, o modelo é desonesto para aquele aluno mais carente”. Para ele, é necessário investimento na modalidade híbrida para que ela se torne viável. Marco também defende a capacitação de professores para lidar com esse formato e a retomada de conteúdos já vistos durante o isolamento.

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