Maradona faz 60 anos ainda como 'Dios' na Argentina

Ex-atacante marcou seu nome na história do futebol dentro e fora de campo

Legenda: Morte de Maradona mobiliza o mundo do futebol
Foto: AFP

Todos os anos, um grupo de fiéis argentinos se junta no dia 29 de outubro para celebrar o seu Natal. Nas contas de Hernan Amez, fundador da Igreja Maradoniana, assim que o relógio marcar meia-noite terá início o ano 60 d.D. Isso é, o sexagésimo ano depois do nascimento de Diego Armando Maradona.

Em 2020, porém, a celebração do natalício do maior ídolo do futebol argentino terá de ser adaptada às restrições impostas pela pandemia.

Sem o encontro presencial e a típica missa dedicada à memória e à vida do eterno camisa 10, as manifestações de afeto maradoniano serão realizadas pelas redes sociais. E com orações à saúde do ex-jogador, isolado em casa após seu guarda-costas sido contaminado pelo coronavírus.

"Queríamos estar em Nápoles para celebrá-lo, mas a situação está complicada aqui [na Argentina] com a Covid. As autoridades ordenaram o isolamento social e não vamos fazer nada em nome de Diego que possa prejudicá-lo. Este ano 59 d.D. foi muito particular. Celebraremos o Natal maradoniano e esperamos que o 60 d.D. seja melhor", diz Hernan Amez, fundador da Igreja Maradoniana.

A criação desse movimento de culto, em 2001, explica em parte a loucura que Maradona gera no povo argentino.
Quando Hernan fundou a igreja com amigos, Maradona já tinha se aposentado do futebol havia quatro anos.

O fiel, que tem 51 anos, viu o ídolo jogar, mas outros tantos fanáticos não o viram em campo. E se tiveram a oportunidade de vê-lo, talvez não o tenham contemplado no auge, como no título mundial em 1986 ou nas conquistas pelo Napoli no fim dos anos 1980.

Sua última demonstração de alto nível técnico foi provavelmente na Copa do Mundo de 1990, perto dos 30 anos, levando a seleção argentina ao vice-campeonato na Itália.

Contudo, à medida que o tempo passa, o ídolo não perde seu apelo. Como ficou claro durante a disputa da última Superliga, encerrada em março, com Maradona treinando o Gimnasia y Esgrima e arrastando multidões para vê-lo, mesmo do lado de fora do campo, nos estádios do país.

Na véspera do jogo contra o Newell's Old Boys, clube que ele defendeu apenas entre setembro de 1993 e janeiro de 1994, torcedores foram à porta do hotel onde estava hospedado para homenageá-lo com um bandeiraço. No dia seguinte, o Newell's colocou um trono à beira do campo para que Maradona se sentasse e assistisse à partida como um rei.

A peregrinação para ver de perto quem eles tratam como divindade foi encerrada com a visita do Gimnasia à Bombonera, na última rodada. O ídolo, que se despediu do futebol em 1997 com a camisa do Boca Juniors, teve seu nome cantado pelos mais de 50 mil boquenses no estádio e ainda ganhou um selinho de Carlitos Tévez. Com a vitória por 1 a 0, gol de Tévez, o Boca se sagrou campeão argentino.

Treinar o modesto Gimnasia y Esgrima, que não tem títulos na primeira divisão nacional, ou vestir por poucos meses a camisa do Newell's antes de disputar uma Copa do Mundo, são pequenas injeções de ânimo que formam parte de uma mesma intenção: sentir-se adorado.

"Eu diria que este Maradona é mais ídolo que o Maradona de 1986. Por tudo o que passou depois, como o Mundial de 1990, o do Maradona rebelde, e o Mundial de 1994, que é o do Maradona trágico... Ele foi driblando todas as mortes e isso lhe converteu em um personagem mais forte do que era", diz Andrés Burgo, autor (com Alejandro Wall) do livro "El último Maradona", sobre o corte do argentino por doping na Copa do Mundo dos Estados Unidos.

Os altos e baixos da carreira, mas especialmente da vida pessoal do camisa 10, ajudaram a humanizar a figura do craque que escancarou suas fragilidades, como o vício por cocaína que o levou a ser internado em 2004 e, posteriormente, a uma clínica de reabilitação em Cuba.

Verborrágico, nunca se privou de emitir suas opiniões, às vezes contraditórias.

Crítico da Fifa e de seus dirigentes ao longo de toda a sua trajetória como jogador, se aproximou nos últimos anos de Gianni Infantino e, inclusive, participou de eventos da entidade que comanda o futebol mundial. Em 2017, foi o responsável por anunciar o vencedor do prêmio de melhor jogador do mundo e o entregou a Cristiano Ronaldo.

Se Maradona mostrou fidelidade a algum tipo de discurso, foi ao de permanente defesa dos governos de esquerda.

Criado em Villa Fiorito, subúrbio de Buenos Aires, assumiu posição de opositor contumaz do governo neoliberal de Mauricio Macri, com quem já tinha entrado em rota de colisão desde a época em que o político era presidente do Boca, e ele, jogador do clube.

Em dezembro do ano passado, Maradona foi à Casa Rosada visitar Alberto Fernández, sucessor de Macri na presidência. Peronista e kirchnerista convicto, o ex-camisa 10 da seleção argentina foi até a sacada do palácio, acenou para os pedestres na Praça de Maio e, com uma réplica da taça de campeão do mundo de 1986, gritou que "eles [os macristas] não voltam mais!".

"Como disse Eduardo Galeano, Maradona é um Deus sujo, um Deus terrenal. Por isso as pessoas gostam tanto dele", completa Andrés Burgo, citando o escritor uruguaio.

Esse caráter mitológico, mas ao mesmo tempo mundano, é o que o diferencia de Lionel Messi, que se resume basicamente ao futebolista, ao atleta intocável do Barcelona que pouco (ou quase nada) cede às contradições do homem comum fora das quatro linhas.

Pesa o fato de que a Argentina, desde Maradona, nunca mais foi campeã mundial. Foi vice em 2014, comandada pelo melhor Messi que já atuou pela seleção, mas o histórico pós-maradoniano acumula mais insucessos que títulos.

Por isso, como explicou Andrés Burgo, há tanto carinho e sentimento depositado nas campanhas de 1986 e 1990, muito mais do que em 2014.

O título no México, com a vitória sobre os ingleses dedicada aos soldados que lutaram na Guerra das Malvinas, e o vice na Itália, convocando os napolitanos a se insurgirem contra a própria seleção italiana, são obras com a assinatura de Maradona. Do jogador e do homem.

Das histórias que Hernan Amaz colecionou nesses quase 20 anos de Igreja Maradoniana, há uma em particular que ele conta com grande louvor.

Um jornalista argentino cobria a Guerra do Iraque e precisava passar por um controle fronteiriço na cidade de Bagdá para seguir rumo ao norte do país. Os soldados que realizavam a checagem de documentos não estavam convencidos de deixá-lo passar, até que viram uma foto de Maradona na carteira do repórter.

Entusiasmados, repetiram entre eles o nome do ex-jogador: "Maradona! Maradona!". O repórter conseguiu passar. "O futebol alcança essas coisas, esses milagres. Foi um milagre maradoniano", diz.


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