Entrevista: Bernardinho fala sobre esporte, gestão e desafios como treinador

Ex-técnico da seleção brasileira, o carioca de 60 anos participou do "Seminário de Gestores Públicos: Prefeitos Ceará 2020", promovido pelo Diário do Nordeste, e explicou também os dilemas do esporte no período

Legenda: Por 4 anos consecutivos, Bernardinho foi escolhido pelo Comitê Olímpico Brasileiro como o melhor treinador do país
Foto: Márcio Rodrigues/Megafoto/Divulgação

Bernardinho tem uma alcunha nobre: carrega o currículo mais extenso e vitorioso da história do voleibol mundial. Carioca de 60 anos, a hegemonia é tanta que não requer sobrenome para ser reconhecido: o cidadão para além do esporte atende por Bernardo Rocha de Rezende, é formado em economia, professor da PUC-RJ e palestrante.

E os feitos, seja como atleta ou treinador, o tornam uma personalidade unânime. Na Seleção, por exemplo, são 32 títulos e sete medalhas olímpicas somando os trabalhos na categoria feminina ou masculina. Campeão 11 vezes da Superliga Nacional, defendeu o Sesc/RJ até o anúncio da suspensão do torneio devido à pandemia de Covid-19. Em participação no "Seminário de Gestores Públicos: Prefeitos Ceará 2020", evento promovido pelo Diário do Nordeste, o profissional falou sobre a gestão de grupo e dificuldades do papel de treinador. 

DN: Ao longo da carreira esportiva, você sempre assumiu papel de liderança em grupos com alta performance. Como você se colocou nessa função?

"De alguma maneira, algumas ferramentas de liderança eu desenvolvi na juventude e meu primeiro treinador observou porque ele me fez capitão sem eu ser o melhor jogador ou ter alguma experiência dessa natureza, mas desde pequeno eu via minha disciplina, foco naquelas tarefas essenciais e minha preocupação com o time, desempenho e as pessoas. Então existiam alguns indícios que tinham de ser desenvolvidos porque não sou adepto da teoria que o líder nasce líder. Agora ser líder tem o ônus, um preço pela responsabilidade, e tudo isso foi desenvolvido, era algo que talvez eu tivesse vontade de assumir. Ficou claro desde muito cedo, na adolescência, 12 ou 14, e ingressei no papel aos 20 pela observação das pessoas, caiam em mim muito mais que a questão técnica. Com a gestão de pessoas, de liderar, me convidaram para ser treinador”.

DN: E ao longo da carreira, quais os momentos mais desafiadores para você?

“Os momentos mais difíceis são sempre os de ligação de pessoas, ainda mais pessoas importantes, como no caso do Ricardinho, que envolvia também a entrada do meu filho (Bruninho), que vinha em uma linha de sucessão, estava em terceiro no grupo de levantadores, mas tive de priorizar a cultura e naquele momento não podia privilegiar o jogador que estivesse transgredindo nossos valores, de trabalhar em equipe, e aquilo realmente foi uma decisão a ser tomada. mas teve outras como o corte do Murilo em 2016, um cara totalmente alinhado com a nossa cultura, engajado, mas que não estava em condições físicas boas. Se tinha alguém que merecia estar naquele grupo campeão era o Murilo, mas são decisões e que cabem ao líder. Quando se toma as decisões não significam que você sabe tudo, eu mesmo tenho dúvidas se fiz o correto, mas tem de acreditar nas opções tomadas”.

DN: Você considera a boa gestão de pessoas como o principal ponto para uma equipe vencedora?

“Em qualquer área é mais complexo o elemento gente do que especificamente questões táticas, técnicas, o ser unidade é mais difícil que a estratégia. Liderar pessoas, um grupo, é mais difícil, exige mais tempo, atenção. Na estratégia, quando você forma um time e tem todas alinhados em uma determinada direção, um propósito, é um pacto, então pode sugerir algo que será absorvido, mais aceitação, fará parte do trabalho do grupo o de colaborar, dar opiniões, argumentar até na forma do time atuar. Liderar pessoas é mais complexo, seja para um jogo ou uma empresa”.

DN: É possível traçar um paralelo entre um time e uma empresa?

“Empreender é um esporte coletivo, ninguém é bom em tudo como produtos, vendas ou pessoas, você pode ser bom um pouquinho, mas não será excelente. Então para empreender tem de ter pessoas excelentes nas áreas diversas e há necessidade de formar times. E onde há pessoas, temos objetivos, necessidade de engajamento, disciplina, seja na área pública ou privada. Para formar um time de esporte, as questões são semelhantes, similaridades enormes. Precisa engajar pessoas na missão, e mais que técnica, gente disposta a fazer sacrifícios, assim se forma o melhor time, seja em qual área for”.

DN: Com tanto sucesso, há algum segredo para desempenhar esse comando?

“Eu tive a oportunidade de ter um mercado para escolher pessoas que é o mercado do voleibol brasileiro, de muita qualidade técnica, também com características humanas importantes, então é a grande base de tudo. E trabalho, nada o substitui e isso a gente controla, a determinação, intensidade, controlar egos, colocar a equipe acima de tudo, a missão acima da gente, e fomos estabelecendo a relação de integridade, transparência. Uma atitude de time independe dos indivíduos, claro que eu reconheço a meritocracia, é preciso fazer os talentos jogarem bem, mas para o time. Aí tem um pouco de contribuição com o treinamento, a intensidade da preparação gera reconhecimento e isso vai sendo fortalecido como a cultura da empresa. Esses valores não são negociáveis e isso talvez seja o caminho da longevidade, de bons resultados, porque a gente vê a força quando o líder, no caso eu não sou mais o líder, não está mais lá e ela (seleção masculina) continua forte, o Renan (Dal Zotto) continua alinhado com a cultura, então é um processo contínuo”.

DN: E como você percebe o atual momento da seleção brasileira de vôlei. Mesmo com o adiamento dos Jogos Olímpicos de Tóquio para 2021, somos favoritos?

“A seleção brasileira é excepcional, o cubano Leal, naturalizado brasileiro, é uma força a mais em um elenco forte. O trabalho do Renan é excelente , alguns jogadores amadurecendo na função de líderes, o Lucão, o Bruno, e tem outros jovens como Alan, que vem para agregar em talento. A seleção de 2016 não era favorita, mas acabou campeão, o que trouxe uma confiança para essa geração de ser uma das favoritas. Não queria colocar a pressão de ser a favorita, mas o Brasil certamente vai com condições de brigar pela medalha de ouro, também no feminino, de ir para Tóquio em 2021 e ser uma das equipes com condições de brigar pelo pódio olímpico”.

DN: A pandemia de Covid-19 afetou o calendário de esporte mundial. Consegue mensurar o impacto no voleibol brasileiro?

“A pandemia trouxe uma série de dúvidas e incertezas e o esporte talvez seja a área mais afetada, com a impossibilidade da presença do público, verba de marketing cortadas ou redirecionadas para outras coisas, e também o distanciamento como impeditivo de treinamento presencial por um tempo, o que acarreta perda ao atleta. Mas o que mais me preocupa é a questão da esporte, do voleibol, não ser mais visto como algo relevante na vida do brasileiro, como elemento do entretenimento, como paixão, ferramenta de transformação, de formação dos nossos jovens. De alguma forma, pode prejudicar ainda mais uma atividade que já vem debilitada de investimento, é algo que me preocupa, de não ser debatido e colocado como elemento importante na perspectiva brasileira”


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