“X-Men: Fênix Negra”: despedida sem graça dos mutantes na Fox

Nova produção repete os equívocos do gênero "herói" e não aprofunda os dilemas pessoais vividos na obra pela protagonista Jean Grey

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@diariodonordeste.com.br
Legenda: Jean Grey (Sophie Turner) é a força motriz do drama pretendido pela obra
Foto: DIVULGAÇÃO

Semanas após “Vingadores: Ultimato” (2019) canibalizar o mercado exibidor e concluir os 10 primeiros anos do “Universo Cinematográfico Marvel” (MCU), outra produção do gênero “herói” chega aos cinemas para também fechar um ciclo. “X-Men: Fênix Negra” dá números finais à trajetória dos famosos mutantes nos estúdios Fox. Diferente do primeiro exemplo, a conta foi fechada sem a mesma catarse ou comoção. 

O filme guiado por Simon Kinberg, estreante no comando de um longa-metragem, é centrado na jovem Jean Grey, interpretado por Sophie Turner (Sansa Stark de “Game of Thrones”). O destino da personagem é a força motriz do drama pretendido pela obra. Parte do passado de Grey é mostrado nos minutos iniciais. Ainda criança, ela passeia de carro com a mãe Elaine (Hannah Anderson) e o pai John (Scott Shepherd). O descontrole dos próprios poderes lança uma desgraça na família. O único alento acontece na acolhida oferecida pelo Dr. Xavier (James McAvoy).  

Mais tarde, já nos anos 1990, os X-Men participam de um arriscado resgate de astronautas norte-americanos perdidos no espaço. Jean Grey quase morre na tentativa, mas sobrevive, infectada por uma indefinível força cósmica. Nasce assim a “Fênix Negra” do título. O cotidiano da mutante telepata é rompido de vez. Problemas do passado retornam e a adolescente prestes a adentrar a fase adulta se vê sem perspectivas. Ela é só ira e pouco consegue dominar o grande poder que carrega nas mãos. Mesmo comum, o argumento teria tudo para funcionar.  

É onde explodem os problemas de Kinberg para contar uma boa história. Parte do enredo aqui ilustrado coincide com o início até provocativo da obra. Entretanto, nada evolui ou se permite aprofundar. O tema da jovem perdida e repleta de dúvidas é diluído pelo caminho.  Se “X-Men: Primeira Classe” (2011) começou nos anos 1960, “X-Men: Dias de um Futuro Esquecido” (2014) nos levou a uma versão alternativa dos anos 1970 e “X-Men: Apocalypse” (2016) encontrou os mutantes na era dos 1980, o contexto histórico no qual “X-Men: Fênix Negra” se encontra é meramente ilustrativo. Não apresenta implicação alguma no decorrer da trama. 

Somente verniz

No máximo, uma ou outra fala perdida tenta adentrar e costurar um ponto de vista das heroínas. A personagem Mística, personificada por Jennifer Lawrence até questiona o nome do grupo. “Há tempos, as mutantes salvam a pele dessa equipe. Talvez devesse ser chamada de ‘X-Women’”. Uma isolada afirmação em tom de piada não segura o tranco de um filme completo. 

Legenda: Mutantes desunidos
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Rapidamente somos lançados no confronto entre bem e mal. A atriz Jessica Chastain (“A Hora Mais Escura”) encarna a ameaça alienígena dos Vuk e pouco entrega alguma motivação plausível. É um desperdício para os talentos da atriz. Por conta do tempo de tela, McAvoy e Michael Fassbender (Magneto) até se mostram um pouco à vontade nos papeis. Dos dois, apenas o líder dos X- Men entrega alguma mudança. Xavier não é o idealista perfeito que tanto prega. Entretanto, ainda é muito pouco. 

“X-Men: Fênix Negra” consegue ser péssimo quando comparada a outras cinemografias de heróis? A resposta é não. A visão irritada e sem brilho de Kinberg para os mutantes pouco difere de aberrações do quilate de “Thor: Ragnarok” (2017). O único erro aqui, talvez seja escolha equivocada de revestir um trabalho precário com um drama superficial. Os X-Men retornam para o domínio da Marvel quase 20 anos depois de reaquecer o filão das adaptações cinematográficas dos quadrinhos.  

Desafios para o futuro

A ressaca de filmes baseados nas histórias em quadrinhos era das maiores no final dos anos 1990. Até hoje, "Batman e Robin" (1997) é atacado por fãs do gênero como o grande vilão daquele instante. O trabalho de Joel Schumacher ("Um Dia de Fúria") é visto como a última pá de cal nas produções dessa natureza. Naquele contexto, "filme de herói" igualou-se a exagero e fracasso.  

Pouco antes dos anos 2000, a Fox remou contra a maré e jogou fichas na ambiciosa leitura de X-Men nas telonas. Explica-se o adjetivo. A colorida saga dos mutantes era a mais popular obra dos quadrinhos daquele tempo. As vendas de gibis eram das melhores. No Brasil, a série animada “X-Men: The Animated Series” tinha poderosa audiência nas manhãs da Globo. A desconfiança era grande. 

Legenda: Talento de Jessica Chastain é desperdiçado
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Um jovem Bryan Singer, já dono dos elogiados "Os Suspeitos" (1995) e "O Aprendiz" (1998) pegou uma grana apertada, um elenco com poucas estrelas, porém com nomes afiados, e entregou "X-Men: O Filme" (2000). Os cifrões retornaram e as engrenagens da máquina Hollywood ganharam nova graxa. 

Quase duas décadas depois, “X-Men: Fênix Negra” encerra o ciclo dos personagens na Fox. Em março último, a Disney concluiu a compra da divisão de entretenimento da Fox por US$ 71,3 bilhões. A operação sinaliza para o surgimento de um gigante na área. Além dos personagens da Marvel, é dona de conteúdos como “Avatar” e “Os Simpsons”

Assim, os “Filhos do Átomo” ganharão releituras e serão ajustados no chamado “MCU”. De cara, elevam-se duas missões. Recuperar uma franquia desgastada e entregar leituras mais atraentes de personagens já cristalizados na mente dos espectadores. Caso do popular Wolverine. Quem sabe, resgatar e focar no clima mais barra pesado dos quadrinhos seja uma saída.

Na mídia em papel, a vida é dura para quem se revela um mutante. Creditados a Stan Lee (1922-2018) e Jack Kirby (1917-94) estas criaturas espelham o doloroso espectro do preconceito. Até onde a memória deixa alcançar, o mundo dos “mutunas” (termo pejorativo usado nos quadrinhos) é doentio, perverso e extremamente perigoso para essa população. Duas distintas narrativas das HQs explicam o drama relatado. 

Lembro do arco "Massacre de Mutantes", no qual uma leva de personagens é trucidada. A parada é tão bisonha que até mesmo outros mutantes participam da caçada desleal. Um exemplo é o lixo tóxico chamado "Dentes de Sabre". Em outra perspectiva, Alex Ross capturou o ódio gratuito em uma das edições da série "Marvels" (1994). Nas tintas do artista, o coletivo X-Men é visto pela população como aberrações, criaturas advindas do inferno. Armados de paus e pedras atacam os heróis que estavam pela cidade somente para salvar o dia. 

Legenda: Velório simbólico para a franquia
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Tempos sombrios

É puro ódio e medo. O equivalente nos dias atuais à caixa de comentários de uma postagem em rede social. Uma experiência interessante nos cinemas é "Freaks" (1932).O título é um soco direto na cara e contextualiza um pouco do "carinho" da sociedade dita "normal" sobre quem é diferente. Assiduamente presentes nos cinemas de hoje, os supers seres se tornaram o escapismo de uma era estranha. Os EUA elegeram um apresentador de TV a presidente. Em paralelo, grupos de extrema-direita se armam de tochas e desfilam em público. Em 2017, a cidade universitária de Charlottesville, localizada no Estado da Virgínia, foi palco de passeata para grupos de supremacistas brancos e simpatizantes do neonazismo.  

Durante o ato, James Alex Fields Jr., acelerou o carro contra manifestantes contrários aos ideais dele. A ativista de direitos civis Heather Heyer (1985-2017) foi assassinada. O covarde ataque deixou pelo menos outros 19 feridos. O mandatário maior daquele País foi brando nas declarações. Diante do acontecimento protagonizado por criaturas tão abjetas, soltou um "há ótimas pessoas dos dois lados". 

É no contexto sombrio do "Make America Great Again" que entregam outro X-Men. Em 20 anos de franquia, os mutantes da Fox guardam o legado de praticamente reascender a era dos "filmes de herói". Porém, são vítimas do mesmo processo que eclodiram. Feitos industrialmente, às pressas, desnutridos de reflexão, são obras escravizadas pelas exigências do tempo no qual são produzidas. Pouco oferecem ao futuro. Pouco querem dialogar sobre novas perspectivas para o cinema. Para o fazer e ler cinema.  

O esgotamento da fórmula "herói" é cada vez mais motivado por conta de filmes sem interesse algum no risco. 2019 ladra e a caravana não para. Outras produções baseadas nas HQs circularão no mercado. Tem Homem-Aranha e até o Coringa ganhou filme solo. Outros Wolverines, Ciclopes e Tempestades virão pelo caminho.  

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