'Ricardo e Vânia' faz refletir sobre o impacto do estigma em vidas marginalizadas

Em seu primeiro livro-reportagem, o jornalista Chico Felitti amplia a história do personagem conhecido como "Fofão da Augusta" e narra o amor de Ricardo Corrêa. O repórter consegue falar de grupos sociais postos à margem, a partir da trama dos dois

Escrito por Rômulo Costa , romulo.costa@verdesmares.com.br
Legenda: Ao narrar a história de Ricardo e seu "primeiro amor", a obra revela descaminhos que o preconceito pode causar em grupos sociais não-aceitos

Quando as trajetórias de Ricardo e Vânia se cruzaram, ainda na década de 1980, ele não era artista de rua nem ela garota de programa. Ricardo trabalhava como cabeleireiro e maquiador depois de deixar o interior de São Paulo para fugir da opressão e tentar a vida na capital. Vânia se chamava Vagner e descobria a sexualidade com o namorado, com quem dividia quitinete, planos e a guarda de uma porção de gatos.

Trinta anos e uma separação depois, a vida dos dois alcançou o improvável. Vagner parte para a Europa para dar vazão aos desejos e se descobre transexual, enquanto Ricardo - gay e esquizofrênico - abandonou os salões de beleza para entregar panfletos de peças de teatro na Rua Augusta, reduto da boemia paulistana.

O rosto de bochechas ressaltadas e caídas, resultado de décadas de injeção de silicone, fez Ricardo perder o nome de batismo e ganhar, na rua, o apelido que lhe atiçava ainda mais os ânimos. Tornou-se o "Fofão da Augusta".

Talvez, a história dos dois continuasse apagada se não fosse a curiosidade do jornalista paulista Chico Felitti (ex-Folha de S. Paulo) pela figura excêntrica de Ricardo. Foi ele o autor da reportagem que humanizou a lenda urbana paulistana, viralizou nas redes sociais e superou um milhão de visualizações, em 2017. O feito lhe rendeu o Prêmio Petrobras de Jornalismo daquele ano.

Agora, o repórter volta à história, dessa vez para contar o que aconteceu entre a publicação da reportagem e a morte de Ricardo, meses depois de o perfil se espalhar pela rede. Em "Ricardo e Vânia", o autor amplia a narrativa a partir do encontro com aquela que foi "o amor da vida" do personagem principal da história.

O livro-reportagem é resultado de uma investigação jornalística ousada, que leva o leitor por uma trama que se revela, passo a passo, a partir das descobertas do próprio repórter. Chico não só se coloca na obra, revelando as idas e vindas da apuração, como insere a própria mãe, a escritora Isabel Dias, que se envolveu pessoal e afetivamente por Ricardo desde a primeira hora. A relação com as fontes, os cuidados e as angústias que surgem ao dar dimensão coletiva a uma trajetória pessoal se completam em um formato narrativo que aproxima e instiga o leitor.

Universal

Pela força dos personagens e da própria forma de narrar, a obra já seria interessante, mas vai além quando, a partir de dois indivíduos, consegue alcançar o universal.

Ao refazer os passos do casal, o autor apresenta as dificuldades de romper padrões muito sólidos na década de 1980, além de apresentar como a comunidade gay como um todo sofreu (e continua sofrendo) com o estigma da Aids, por exemplo. Também dimensiona como a negativa de direitos pode afetar a saúde mental e qualidade de vida daquelas pessoas que não se enquadram nos limites do conservador.

Ricardo (com seu talento desperdiçado, mais de 1,5 litro de silicone introjetado no rosto e uma esquizofrenia negligenciada) sentiu as consequências dessa negativa ao longo de 60 anos. Vânia ainda sente.

Nos tempos em que a liberdade é questionada em um movimento de inflexão social, o livro-reportagem de Chico Felitti acaba por acender várias dúvidas e ainda faz refletir sobre uma certeza. A de que toda decisão coletiva impõe revoluções muito pessoais que podem ser bem dramáticas, como foi a vida de Ricardo.

Serviço
Ricardo e Vânia

Chico Felitti
Todavia 2019, 192 páginas
R$ 54,90/ R$ 39,90 (e-book)

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