Princesa valente

Criador de "Os Simpsons" e "Futurama", Matt Groening investe na fantasia medieval com "(Des)encanto" e apresenta ao público um desajustado conto de fadas sobre a inadequação adolescente

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@diariodonordeste.com.br
Legenda: Elfo (Nat Faxon), Bean (Abbi Jacobson) e Luci (Eric André) são parceiros e tentam sobreviver neste mágico universo repleto de tirania e completo nonsense

Sem muitas dúvidas, o lugar de Matt Groening no olimpo do entretenimento está assegurado. O posto é explicado pela existência ininterrupta de "Os Simpsons" no imaginário da cultura popular das últimas três décadas. Ao criar a ácida narrativa de uma família repleta de problemas, o cartunista e produtor foi capaz de reformular o modo como a televisão trata e exibe os desenhos animados. Animação, definitivamente deixou de ser coisa destinada apenas aos pequenos.

O famoso universo dos habitantes de Springfield baseia-se no mundo real como o percebemos. Assim, dando sinais da necessidade de explorar outros temas e pontos de vista, Groening apontou a metralhadora de piadas para a ficção científica em "Futurama" (1999). Em 2018, sob as bênçãos da Netflix, foi a vez do norte-americano sacar da cartola o mundo medieval de "(Des)encanto" e, de alguma maneira, olha para os temas do presente por meio de uma moldura fincada no passado.

Estamos na "Terra dos Sonhos", lar da rebelde princesa Bean (Abbi Jacobson). Esqueça o legado das antigas princesas da Disney. A fantasia medieval da Netflix insere uma protagonista dada a perder noites em bares e arrumar brigas com marmanjos. Obrigada a casar por pura questão política do pai, o autoritário e confuso Rei Zog (John DiMaggio), o cotidiano da jovem será totalmente alterado com a chegada de duas criaturas mágicas, o demônio Luci (Eric André) e o elfo chamado Elfo (Nat Faxon).

O desajustado trio é que conduz a trama dos 10 episódios da primeira temporada. Em certos momentos do desenho, estas figuras até lembram um ou outro personagem de trabalhos anteriores do cartunista; porém, o mundo onde vivem é construído com cores e cenários bem mais complexos. O belo trabalho de design, aqui, oferece os toques surrealistas necessários à construção crível daqueles lugares.

Parte da diferença de tom e estilo em "(Des)encanto" certamente tem a ver com a presença, desde o início, de Josh Weinstein como colaborador de Groening e showrunner da série. Além das experiências com "Os Simpsons" e "Futurama", o parceiro adicionou algo da sua expertise com comédias de ação ao vivo e outras obras - a exemplo de "Mission Hill" (quem não conhece, vale a pena conferir) e do mais recende "Gravity Falls: Um Verão de Mistérios", destinado ao público jovem.

Mudanças

Com mais de três décadas de batente na TV, o desafio de Groening foi estabelecer uma história voltada para o formato de exibição proposto pelo popular serviço de streaming. Em produções anteriores, a preocupação da equipe de roteiristas era estabelecer uma trama concisa e fechada num único episódio. A densidade e o ritmo destinados à televisão (com 22 minutos de exibição cortados por comerciais) podem ser comprometidos em um episódio ininterrupto de Netflix de 30 minutos.

As piadas visuais e verbais contidas em "(Des)encanto" conseguem ser rápidas e certeiras, mas agora elas estão no contexto de um estilo mais sério e direto de contar histórias. O humor está mais discreto e agarrado a elementos ilustrativos, lembrando em muitos momentos as páginas da revista Mad.

Tal estrutura é completamente oposta ao que Groening vem produzindo nos últimos anos. Percebe-se, assim, certa irregularidade na junção entre comédia e temas abordados ao longo da animação.

A metade da trama pouco se aproxima dos excelentes capítulos localizados no início e no fim da série. A pegada é desacelerada e o sentimento no espectador é de que as melhores gags estão sendo deixadas para o encerramento. Isso explica, por exemplo, a vertiginosa queda na atuação do simpático Elfo. Sua apresentação é hilária. Oriundo do reino dos elfos, um lugar onde todos cantam enquanto trabalham, a criatura verde é totalmente incomodada com aquela falsa alegria. "Cantar enquanto você trabalha não é felicidade, é doença mental", diz antes de deixar a terra natal para sempre.

"(Des)encanto" narra as desventuras de uma princesa presa a uma sociedade controlada pela visão masculina, onde o senso comum e a ignorância são decisivos até mesmo para a pseudo ciência daquele tempo. "Seu primeiro erro foi educá-la", dispara o conselheiro Odval ao rei. Para os fãs de outras jornadas de Groening, apreciar o cotidiano de Bean, Elfo e Luci significa redefinir o relógio interno de humor. As risadas são mais suaves e difusas e, mesmo com pontuais tropeços no encaixe das ações, a série consegue se equiparar ao modo crítico como este realizador segue enxergando a sociedade.

4,4 milhões

De pessoas assistiram ao episódio piloto nos três primeiros dias de exibição na Netflix. Destes, 3,2 milhões de telespectadores ( 73%) tinham entre 18 e 49 anos

10 episódios

Compõem a primeira temporada da série, na qual o desajustado trio conduz uma trama cujas referências vão da revista Mad a Monty Python e J. R. R. Tolkien

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