Pratinho: uma tradição da culinária cearense disponível ao gosto de todos

O popular "pratinho" é culturalmente uma das opções gastronômicas mais acessíveis e festejadas do paladar cearense entre as comidas de rua 

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@diariodonordeste.com.br
Foto: FOTO: THIAGO GADELHA

Presença corriqueira nas Praças Públicas. Apreciado no entorno dos estádios de futebol e na porta das festas. Frequência certa na beira das calçadas da Capital. É da rua. Sugestivo, em especial no turno da noite, cabe no bolso e agrada públicos distintos. Dos alimentos populares do cearense, o "pratinho" é receita de renda extra e tradição.

Os apaixonados pela iguaria guardam na memória um ponto de venda só seu. Os preços e a composição dos pratos são variados, porém nunca distantes da realidade de quem é devoto. Arroz, baião de dois, farofa ou paçoca. Acompanhado de vatapá, creme de galinha e do colorido da salada. Há quem incremente com carne do sol e calabresa. Compacto no espaço, expressivo na união de sabores.

Linda Nepomuceno guarda intimidade com o tema. Há quase uma década atende os paladares de um concorrido espaço de Fortaleza. O bairro Cidade 2000 tornou-se referência quando o assunto é petiscar lá fora. Visitantes são recepcionados com aromas distintos. Tem da tábua de acarajé ao oriental yakissoba. Salgados, sandubas e sucos disputam território. O "pratinho" é certeiro à pressa da multidão.

"Atendo muitos clientes que estão comigo desde o começo. Quando chegam é aquela coisa de conversar. Alguns posso não lembrar o nome, mas o tratamento é VIP para todos", se diverte a proprietária da "Barraca da Linda". Um dia antes de completar 46 anos, a vendedora compartilha que a atividade foi despertada graças ao companheirismo das amigas de bairro.

Linda adentrou o universo dos alimentos de rua como ajudante. Trabalhou um ano com Kátia (hoje falecida) e dois anos e seis meses com Maria. Ao presenciar uma reunião de membros da Regional II com permissionários da Cidade 2000, a ideia do próprio negócio virou realidade. Próximo passo foi batalhar pelas cadeiras e por uma mesa em condições de acomodar os ingredientes. São nove anos de uma rotina diária, cuja carga horária pode algumas vezes superar as 10h de trabalho.

Legenda: Carne de sol, baião de dois, paçoca e creme de galinha são algumas das iguarias que compõem o típico pratinho cearense
Foto: FOTO: KID JÚNIOR

Cultural

Ivan Prado é consultor de gastronomia do Senac e detalha que para conhecer um povo basta ir ao mercado ou comer na rua. Isso é importante para cada sociedade mostrar sua identidade. "Comer é um ato cultural. O pratinho, especificamente, leva um pouco dessa tradição. É essa mescla dos pratos tradicionais que temos na culinária cearense, tipo o baião de dois, carne de sol, a adaptação cearense do vatapá e o creme de galinha que antigamente consumíamos nas festividades".

O especialista detalha os aspectos econômicos inerentes à prática. "É uma oportunidade de consumir essa comida 'caseira', de uma forma meio fastfood, rápida. Em relação a quem produz, a comida tem um poder transformador no sentido de você poder rentabilizar logo e fácil. Pessoas que perderam emprego ou não conseguiram recolocação no mercado partem para essa comida tradicional", completa o entrevistado.

Natural de Campos Belos, distrito de Caridade, Linda era adolescente quando decidiu morar na casa de uma tia em Fortaleza para dar continuidade aos estudos. Hoje, família constituída, divide sabores que resgata da memória afetiva. O tempero, justifica, é a delicadeza e cuidado com as refeições preparadas. Não fez curso de culinária. Foi na raça, no querer.

"Foi só mesmo eu vendo a Kátia fazer que eu comecei a ter ideias. Ela só vendia vatapá, paçoca e arroz. Eu não, optei por incrementar adicionando a carne de sol e calabresa". A mulher dedicada ao comércio dos pratinhos confessa que uma farta parcela dos compradores é formada por gente de outros bairros. Chegam das comunidades próximas à 2000 e até endereços mais distantes. Eusébio, Iparana, Conjunto Ceará e Rodolfo Teófilo.

"A gastronomia de rua é muito presente no estado do Ceará e, mais especificamente, na cidade de Fortaleza", aponta a pesquisa "Práticas Alimentares Fortalezenses: Um Estudo da Obra Fortaleza da Gastronomia de Rua", de Vanessa Noronha Freire. No trabalho de conclusão do curso de Gastronomia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), ela explica que as comidas ligadas a essa modalidade são muito populares e agradam a maioria.

"Tais preparações comumente são típicas e são carentes de um registro bibliográfico específico correspondente, correndo o risco de se perder no tempo por ficarem espalhadas em diversos livros de receitas e por serem, em linhas gerais, transmitidas pelo registro oral", reflete Vanessa no texto.

A autora analisa aspectos históricos e culturais de pratos tradicionais presentes no livro "Fortaleza da Gastronomia de Rua". A publicação coordenada por professores do Curso de Gastronomia da UFC é resultado do programa de extensão "Gastronomia Social no Jardim da Gente", realizado no Centro Cultural do Grande Bom Jardim.

A iniciativa protagonizada por Vanessa é de dar água na boca. Desnuda itens indispensáveis no dia a dia dos cearenses. Aborda da tapioca ao cuscuz e os mistérios do vatapá também são esmiuçados. Após situar o leitor quanto às origens da iguaria, fruto da miscigenação de culturas conectadas em meio à formação do Brasil, principalmente a africana, indígena e portuguesa, a autora aprecia a relação do prato com o Ceará.

"O vatapá é apreciado em Fortaleza o ano inteiro, embora ganhe maior destaque no mês de junho, em que ocorrem os festejos de São João. Neste mês, são montadas barracas em que se vendem comidas regionais. As variações do prato dizem respeito quanto à proteína utilizada em seu preparo, a qual pode ser frango (desfiado), camarão ou peixe. Além do dendê, um bom vatapá tem que ter um pouco de pimenta, e os que têm maior predileção pela ardência colocam este ingrediente no prato à parte", desvenda.

O vatapá é indispensável na produção de Linda Nepomuceno. "É vendido com os elementos que compõem o pratinho nas calçadas das casas dos mais variados bairros de Fortaleza. Além disso, é importante notar que muitas famílias têm a renda familiar integral ou complementar com o comércio dessa comida típica", reflete Vanessa.

"O pequeno custa sete reais e o grande 11. Tem ainda a opção média para viagem, no valor de nove reais. Para me encontrar na Praça da 2000 é só procurar pela 'Barraca da Linda', não tem erro. De 19 horas em diante estou lá", avisa a comerciante do democrático pratinho.

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