Páscoa diária: histórias de pessoas que superaram a situação de rua por meio do contato com a arte

Se o momento do ano é de refletir sobre passagens, cabe achar o lugar em que elas se fazem todos os dias. Neste especial do caderno Verso, conheça trajetórias de superação de Wagner Gonçalves, Davi Wallace, Maria da Penha Silveira e Antônio dos Reis

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@verdesmares.com.br
Legenda: Wagner Gonçalves, Davi Wallace, Maria da Penha e Antônio dos Reis contam o processo de mudança pelo qual passaram
Foto: Fotos: Camila Lima, Fabiane de Paula, Natinho Rodrigues e Isanelle Nascimento

Paulo Freire (1921-1997) certa vez escreveu que "ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção". A frase, gestada em um dos momentos mais importantes da carreira do estudioso, até hoje repercute no seio acadêmico e em variados setores ligados ao saber justamente por favorecer a ideia de que só pode haver evolução social se ela envolver pessoas e meios que a tornem mútua, digna do todo.

Em outra metade de Nordeste, assumindo semelhante perspectiva com o pedagogo e filósofo pernambucano, o arte-educador cearense André Foca deixa entrever a relevância desse princípio no ofício que executa. Na fala tranquila disposta ao debate, afirma:

"O diálogo com o mundo muda, e em muitos casos é através da sensibilidade que a arte transcende, que as pessoas se abrem a novos ou outros diálogos já esquecidos, 'engavetados'".

Tal visão foi construída, conforme conta, por meio do intrínseco contato com a realidade das ruas. Desde 1996, André faz do contexto urbano cenário promissor para fazer transbordar aprendizados. Inicialmente entre crianças, com a prática da capoeira; e há 12 anos com adultos, quando passou a trabalhar no Centro de Atendimento à População em Situação de Rua (CAPR), considerado o primeiro equipamento público de Fortaleza voltado ao atendimento de pessoas cujo lar é o ruído insone da metrópole maiúscula.

Foi lá e nos outros espaços de mesmo segmento nos quais atuou que ele conheceu as histórias reveladas por Wagner Gonçalves, Davi Wallace, Maria da Penha Silveira e Antônio dos Reis. São eles - outrora em situação de rua e hoje, por meio do trato com a arte, novos cidadãos - os perfilados neste especial, dedicado a trazer à tona narrativas em que o sentimento pascal, de passagem para uma vida nova, torna-se exercício diário. Por vezes doloroso e amargo, é verdade. Necessário em cada pequeno gesto.

Na estrada de cada um, assim, perfazem-se a condição precária de quando estavam sob o relento e o testemunho vivo de abertura de horizontes a partir do enlace com linguagens feito as artes cênicas, artes visuais, música e literatura, dimensões possíveis do transformar. "Sou um privilegiado. Penha, Davi, Antônio e Wagner são exemplos de superação e capacidade", considera André. É mergulhar em suas trajetórias para saber. Achegue-se a este conteúdo.

>> Leia depoimento completo do arte-educador André Foca sobre o processo de sensibilização das pessoas em situação de rua por meio do contato com a arte

A situação de rua está inerante a qualquer pessoa, seja ela favorecida economicamente ou não. Falando-se em economia, observo que a desigualdade absurda no quesito de distribuição de renda favorece, e muito, para o aumento do  números de pessoas em situação de rua. 

Desde que me entendo por gente - e falo de uma adolescência precoce - conheci a realidade das ruas por meio do desenvolvimento de minha arte-capoeira em um contexto urbano. Era meados de 1996, no centro da Cidade de Fortaleza, mais especificamente no Parque das Crianças. Lá, conheci muitas crianças que viviam nas ruas e que, ao tocar do berimbau, se aproximavam com a curiosidade de criança ainda viva, mesmo em meio a muito caos.

A droga da época usada por essas crianças, muitas vezes para fugir da dura realidade e amenizar a fome, era a cola de contacto, conhecida como cola de sapateiro. Substância essa que era abandonada para arriscar movimentos, toques e sorrisos em meio ao brinquedo popular da capoeira. Foi por meio desse "evento", que fui tocando o trabalho social mais concretamente e o desenvolvimento da arte como educação e redução de danos.

Passei a trabalhar, então, diretamente com crianças em situação de rua em meio à interação com outras pessoas que vinham dos bairros e do entorno. Mas foi em 2007 que lidei mais diretamente com as pessoas adultas nessa mesma situação, exatamente no primeiro equipamento público do município para este público, o Centro De Atendimento às Pessoas em Situação de Rua (CAPR).

Realizei meu ofício por quase todos equipamentos públicos desse seguimento em Fortaleza, sempre na proposta de desenvolver a arte-educação com as pessoas em situação de rua, perpetuando o movimento até os dias de hoje. Atualmente, sigo em uma proposta independente, por meio do Coletivo ArRUAça, gerido em parcerias com outros profissionais que se identificam com a doação para a mesma causa, e tenho muito a falar sobre a importância da arte-educação e cultura nesses casos específicos e em quase todos os outros que podemos pensar com relação a vários fatores, a saber: fortalecimento de vínculos, relações afetivas e com o meio social, fortalecimento da identidade social, do empoderamento, da auto-estima, da emancipação, da criatividade em ressignificar e melhorar a qualidade de vida.

Legenda: O arte-educador André Foca, entre outras atividades, realiza o projeto Pedal Literário, destinado a levar literatura para pessoas em situação de rua
Foto: Foto: Camila Lima

A pessoa que chega na situação de rua, em muitos casos, já tem perdido muito do interesse do conceito de sociedade padrão, pois tem muitos rompimentos, quebrou ou fragilizou os vínculos com a família, comunidade, emprego e até consigo mesmo, não se percebendo mais dentro de um contexto aceitável pelo sistema. Isso acaba sendo, então, muito autoprejudicial. 

O diálogo com o mundo muda e, em muitos casos, é através da sensibilidade que a arte transcede, que as pessoas se abrem a novos ou outros diálogos já esquecidos, "engavetados". Existem muitos e muitos casos de saúde mental fragilizada e pessoas em surto que conseguem se abrir ao contato interpessoal e consigo mesmo por meio da arte. A afetividade, acolhida, o desprendimento não cívil, não real e não religioso abrange essa possibilidade. É emocionante lembrar de vários casos onde a agressividade foi substituída por amizade.

O simples fato de se sentir bem novamente, criando, tocando, lendo, cantando, pintando, produzindo, assistindo, dançando ou participando de qualquer outra manifestação cultural, massageia o coração das pessoas que, no dia a dia, são invisibilizadas ou maltratadas, tidas como "bichos", sofrendo violências institucionais e/ou comunitárias, pegando sol e chuva, frio e calor, incertezas e descontextos de um padrão diferente de um cidadão de direitos.

Ressalto, assim, que o processo de arte-educação não tem o intuito de formar e criar artistas. Muitas vezes encontrei na rua artistas já consagrados, mas que tinham perdido o tesão por sua arte, assim como pessoas que superaram a situação de rua por terem permitido uma abertura para essa ressignificação de suas vidas por meio da arte.

Horas a fio de práticas às vezes ilícitas foram trocadas por mãos na argila, ensaios de teatro, construção de instrumentos e diálogos transversais que não garantiam simplesmente "uma ocupação", como muito escuto da sociedade, que é disso que "os desocupados" precisam: trabalhar, aprender e ocupar a mente. Na pura ignorância de não saber da história do outro, do que ele já passou e como seu psicológico (que é diferente em cada pessoa) lidou com aquela situação extrema.

Pode ser você amanhã em situação de rua. Ninguém está imune a isso, seja por um desequilíbrio financeiro, uma decepção amorosa ou a perca de um ente querido. E se você chegasse à situação de rua, o que iria querer receber da sociedade? Desprezo ou afeto? 

Juízo de valor não cabe a quem trabalha com pessoas, principalmente quando elas estão em situação de rua. Cada caso é um caso e merece atenção. Merece uma, duas ou dez oportunidades. Não estou falando de colocar a pessoa "debaixo da asa" e resolver tudo por ela; pelo contrário, falo em explorar novamente a subjetividade e criticidade de cada sujeito, de trazer em simples atos mais dignidade e aceitação em quando ser humano e cidadão de direito.

Durante toda a minha trajetória, conheci pessoas incríveis em situação de rua e tive a sorte de aprender muito com elas, de trocar experiências e vivências. Sou um privilegiado. Maria da Penha, Davi Wallace, Antônio dos Reis e Wagner Gonçalves são exemplos de superação e de capacidade, assim como várias outras e outros que já conheci. E mesmo os que não superaram a situação de rua, mas despertaram na busca de viver um pouco melhor, mesmo sob o relento. Coisa que é preciso ser entendida e respeitada: tem muitas pessoas que não querem sair das ruas e não são vagabundas por isso.

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