Cem anos de João Cabral de Melo Neto: histórias na rodoviária de Fortaleza atualizam poema do autor

Apanhado da trajetória do pernambucano demarca narrativas de viajantes feito a de Severino, protagonista de seu poema mais famoso; veja alcance do legado do poeta e lançamentos que celebrarão a data

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: A fim de conhecer os tantos rostos severinos, transitamos pela rodoviária de Fortaleza para conhecer histórias
Foto: Foto: Helene Santos

Poderia se chamar Severino de Maria, feito aquele desenhado em versos por João Cabral de Melo Neto em “Morte e Vida Severina”. Mas calhou de nascer José Sousa Viana. Tem seis décadas de vida aparentes na pele avermelhada pelo sol, farol a iluminar as pelejas que traz consigo.

Distraído, rodeado de malas, estava sentado próximo à plataforma de acesso aos ônibus, no Terminal Rodoviário de Fortaleza – Engenheiro João Thomé. O local foi escolhido por nossa equipe para descobrir quais os outros rostos do protagonista do poema mais famoso do autor que hoje, caso vivo, completaria 100 anos.

Ainda que driblando “a morte de que se morre de velhice antes dos trinta”, José Sousa não esconde a penúria que passou ao sair de Umirim – distante cerca de 100 quilômetros da Capital cearense – para o Pará. Era o fim da década de 1970. Seguiu os rastros do pai, partindo com o objetivo de conseguir melhores condições financeiras, uma existência que fosse minimamente viável. Digna. 

Legenda: José Sousa Viana, sentado em um dos bancos da rodoviária de Fortaleza com as malas e pesada rapadura a tiracolo, conta como saiu de Umirim para o Pará
Foto: Foto: Helene Santos

“Sofri porque tirei o empréstimo de um banco e o fruto que eu plantei não deu. Eram 5.500 pés de café. Então, tive que vender o terreno para pagar a conta. A gente que é pobre, você sabe como é, tem que se virar pra quitar as dívidas, né? O rico não, não tá nem aí. Tira empréstimo num banco, tira também em outro, e vai se dando pra frente”, observa.

Lembra o verso de João Cabral, quando questiona:

“Mas que roças que ele tinha,/ irmãos das almas/ que podia ele plantar/ na pedra avara?”

Também é possível recordar do poema ao escutarmos a história de Rita Maria de Lima Dias, 85 anos. De um lado, Cabral narra: “Mas isso depois verei:/ tempo há para que decida;/ primeiro é preciso achar/ um trabalho de que viva”. Do outro, a aposentada potiguar conta: “Já nos mudamos muitas vezes, minha família e eu, porque minha sobrinha vive tentando a sorte nos concursos públicos que ela faz. Se ela passar, lá vai nós”, ri.

Ao mesmo tempo, deixa entrever o quão duro é não fincar raízes devido à necessidade de driblar o pesado da vida. “Antes de irmos para o Rio de Janeiro, eu não queria partir, porque nunca tinha saído de Mossoró (RN). Quando a gente é apegado com nosso lugar tem disso, né? Mas, pra sobreviver, a gente precisou ir”.

Legenda: Rita Maria de Lima Dias percorre vários Estados para acompanhar a sobrinha que busca superar necessidades
Foto: Foto: Helene Santos

Outro que se soma a essas vozes em retirada é José Valdir Damasceno, 62. Estava encostado numa escada, aguardando o ônibus para Paracuru, quando conversou conosco. O município que hoje reside é o mesmo de onde saiu, em 1986, com destino a São Paulo.

Confessa ter ido desejando apenas conhecer a cidade, como um amigo sugeriu. Mas logo se viu necessitado, precisando sobreviver em meio a um terreno hostil

“Trabalhei de metalúrgico, em tinturaria, fazendo entrega. E o que mais passei lá foi medo e frio. Não é fácil levantar às quatro horas da madrugada, ir para o ponto do ônibus e pegar aquela garoa. Aí chegava aqueles caras pra pegar o coletivo e você não sabia se era gente que prestava ou gente ruim. Era uma dificuldade”, recorda.

São, portanto, incontáveis Severinos a encontrarmos pelo caminho, “iguais em tudo e na sina”. À boca miúda ou em alto grito, essas narrativas se avolumam diariamente e reacendem o fôlego daquele que, por meio de versos inspirados e cortantes, denunciou as injustiças sociais e mazelas do povo, tornando-se um dos nomes mais importantes da literatura brasileira.

Neste centenário de João Cabral de Melo Neto, o Verso mergulha na trajetória do pernambucano que foi muito além de “Morte e Vida Severina”, mas ganhou, com esse poema, um chamariz para o conhecimento de uma produção sempre atenta à vida.

Legenda: José Valdir Damasceno aguarda ônibus para a cidade natal, Paracuru, de onde saiu para trabalhar em São Paulo
Foto: Foto: Helene Santos

Poética racional

Não foi à toa que João Cabral de Melo Neto recebeu a alcunha de Poeta Engenheiro. Uma das características mais fortes do modernista da Geração de 45 – nascido em 9 de janeiro de 1920, no Recife – é a completa racionalidade na forma de lapidar o verso, o que gerou uma poética sem lirismo, embora com potência e emoção impressas em alta dose numa cirúrgica métrica.

A paixão por estar entre palavras nasceu ainda quando jovem, ao frequentar o Café Lafayette, reduto intelectual da capital pernambucana, antes de se mudar com a família para a cidade do Rio de Janeiro.

Foi no período ainda na terra natal que conheceu Vicente do Rego Monteiro, pintor que viria a influenciar decisivamente na carreira artística, abrindo veredas para que, posteriormente, também fosse amigo de nomes como Carlos Drummond de Andrade.

A parceria com este, inclusive, ditou os rumos do que viria a ser a poesia social de João. Após a publicação do primeiro livro, “A Pedra do Sono”, em 1942 – de caráter surrealista – uma troca de correspondências com o escritor de Itabira (MG) o levou a decidir sobre como gostaria de escrever.

Legenda: João Cabral de Melo Neto passeou por diferente paisagens, feito que se refletiria numa poética atenta ao povo e à vida
Foto: Arte: Louise Dutra

Optou por algo que chegasse o mais próximo das pessoas e de um caráter objetivo, longe de qualquer construção elitista.

Daí vieram obras seminais, como “O Engenheiro” (1945), “O Cão sem Plumas” (1950), “Agrestes” (1985) e “Tecendo a Manhã” (1999), dentre muitas outras. Importante destacar o quanto cada uma delas incorporou as diferentes paisagens percorridas pelo poeta, especialmente por meio da atividade diplomática, exercida durante 40 anos junto ao Itamaraty.

Devido ao ofício, residiu em países da África, Europa e América, elegendo a Espanha como um de suas nações preferidas – “Sevilha Andando”, publicado em 1990, é uma das provas disso.

Um capítulo controverso da época em que representou o Brasil no exterior foi quando, em 1952 – período em que o Partido Comunista do Brasil estava na ilegalidade –, João Cabral foi acusado de criar uma “célula comunista” no Ministério de Relações Exteriores, junto a mais quatro diplomatas.

Todos foram afastados por Getúlio Vargas em 1953, ganhando capas de jornal com a manchete “Traidores do Itamaraty”. Conseguiram retornar ao serviço em 1955, após recorrerem ao Supremo Tribunal Federal. 

Abrangência

Não houve polêmica, contudo, que segurasse o gênio criativo e a relevância dada ao trabalho literário do recifense. João Cabral de Melo Neto colecionou grandes reconhecimentos ao longo da vida.

Entre os mais importantes, constam a posse, em maio de 1969, na Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira de número 37; e os prêmios Jabuti, Camões, Neustadt International (EUA), Rainha Sofia (ESP), o de Poesia do Instituto Nacional do Livro e o da União Brasileira de Escritores, entre vários outros.

Até sua morte no Rio de Janeiro, em 1999, aos 79 anos, era frequentemente lembrado por ser cogitado para receber o Nobel de Literatura.

Além disso, teve alguns de seus principais poemas adaptados para o teatro. Chico Buarque, por exemplo, musicou uma peça baseada em “Morte e Vida Severina”. Já em 2016, a coreógrafa carioca Deborah Colker realizou a transposição talvez mais abrangente e criativa de uma produção cabraliana.

Aproximando o conteúdo em versos da dança e da performance, apresentou o espetáculo “O Cão sem Plumas”, cuja pesquisa e execução resultaram num profundo mergulho em alguns dos principais locais de Pernambuco. Resultado: venceu a principal categoria do prêmio russo Benois de la Danse. 

No ramo da literatura, o mercado editorial se aquece para celebrar o centenário do poeta, a partir da preparação de distintas edições. O selo Alfaguara, do Grupo Companhia das Letras, detentor dos direitos autorais do autor, prepara duas edições especiais da obra de Cabral.

Em junho, chega às livrarias a poesia completa do escritor, organizada pelo crítico e ensaísta Antonio Carlos Secchin. Junto à Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), o estudioso também lançará a nova edição, ampliada, de “João Cabral de Ponta a Ponta”, obra de sua autoria atualmente esgotada.

No segundo semestre, ainda sem data definida, é a vez do lançamento de um volume de prosa também pela Alfaguara. O título vai incluir entrevistas, discursos e fartura de textos que estão publicados em edições dispersas, ou mesmo fora de catálogo há muitos anos. O organizador é o acadêmico Sergio Martagão.

Também estão previstos uma fotobiografia pela editora Verso Brasil – com organização do poeta Eucanaã Ferraz, incluindo mais de 300 fotos com amigos, familiares e lugares por onde passou; uma biografia escrita pelo jornalista e doutor em literatura brasileira Ivan Marques, pela Todavia; e uma coletânea bilíngue de português-espanhol, com lançamento marcado para novembro, na Feira Internacional do Livro de Quito, no Equador.

Também será homenageado no Festival Literário de Araxá (MG), em julho, ao lado de Clarice Lispector, cujo centenário também celebramos neste ano, em dezembro.

Assuntos Relacionados