O encontro de Ailton Krenak com a Bienal Internacional do Livro do Ceará

Em sua primeira passagem pelo evento literário do Estado, o escritor e líder indígena reflete sobre o potencial da arte como edificante de uma nação e aproveita para estreitar laços com parentes locais

Escrito por Roberta Souza , roberta.souza@diariodonordeste.com.br
Legenda: Ailton Krenak discutiu a ancestralidade nas narrativas e o papel da arte na construção da identidade de um povo
Foto: FOTO: HELENE SANTOS

Enquanto desenhava uma dedicatória para o amigo Daniel Munduruku na primeira página da obra "Ideias para adiar o fim do mundo", Ailton Krenak lembrou-se de uma provocação: "você nunca vai ser um escritor famoso riscando o livro dos outros desse jeito". A frase havia sido dita pelo mesmo colega, ao pé do ouvido, num dos primeiros encontros dos dois em eventos literários do País. Nunca foi esquecida e tampouco lembrada. É tanto que para o mesmo interlocutor, o líder indígena de Minas Gerais estava a dedicar, em meio a um intervalo da XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, traços e mais traços de uma literatura que vai muito além das palavras escritas.

"A possibilidade de uma literatura indígena é uma descoberta recente do público e, para um eventual leitor, ela é uma novidade. Eu até escrevi uma vez um pequeno texto refletindo sobre isso, retomando a ideia das inscrições rupestres, das cavernas, dos paredões, abrigos da antiguidade onde nossos ancestrais deixavam marcas, e relacionando isso com a ideia de que as narrativas da oralidade são de alguma maneira essa literatura", arremata Krenak, instantes após a dedicatória.

Convidado a falar sobre as narrativas de seu povo e a memória dos antigos no espaço "Oralidade, Ancestralidades e Mestres da Cultura" da Bienal do Ceará, o escritor e ambientalista comemorou o protagonismo conferido a ele, Munduruku (PA) e Cristino Wapichana (SP), por exemplo. "Promover esse lugar que tem sido chamado de 'lugar de fala' para cada interlocução, seja ela no campo da questão de gênero, de raça, de cultura, e no caso do povo indígena, assegurando nossa voz, eu acho que é fazer a coisa certa", pontua.

Durante muito tempo, na história do nosso País, não foi dada atenção para isso. O que existe de bom na literatura a favor dos índios e feito por não-indígenas é muito bacana, muito bem-vindo, mas está na hora dessa literatura ser literatura indígena, feita pelos indígenas, narrada pelos indígenas. Que esse encontro se dê entre pessoas, sem mediação", defende.

Arte política

A trajetória de Ailton, pertencente à etnia crenaque e nascido na região do médio Rio Doce, é atravessada pela atuação política frente às causas de seu povo. Um dos exemplos disso foi sua participação na Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Carta Magna Brasileira de 1988. Já naquela época, ele protestava por dignidade. E um capítulo inédito sobre a proteção dos direitos dos indígenas na Constituição foi garantido graças à essa luta. Ao lançar olhar crítico sobre o Brasil de hoje, Krenak revisita um passado não tão distante.

"Mesmo que a gente esteja fazendo poesia e celebrando nossa arte, nossa cultura, a gente não pode se distrair, porque o autoritarismo se dissimula, aparece de várias formas. É por isso, inclusive, que essa ideia dessa democracia representativa, essa democracia formal, precisa ser posta em questão. Porque se a gente aceita que nós estamos vivendo uma democracia só porque somos convocados às urnas para escolher um presidente, isso pode ser uma grande trapaça", declara o ativista.

Legenda: Povo Jenipapo-Kanindé acolheu Ailton Krenak na comunidade em Aquiraz por ocasião da atividade "Bienal fora da Bienal"
Foto: FOTO: BETO SKEFF

O escritor avalia que vivemos atualmente num cenário "que está sendo sucateado por uma mentalidade racista, preconceituosa em todos os sentidos" e isso o preocupa muito. "Fico pensando como o Brasil pode se fortalecer, chacoalhar e tirar essa praga que está nos nossos ambientes", reflete. A resposta, ele mesmo dá.

"É aí que está a importância dessa Bienal. Ela convoca autores, pensadores, filósofos, artistas, ela convoca o cidadão, na verdade. É claro que se alguém se constituiu num narrador, num escritor, num contador de histórias, ergueu-se nessa posição a partir de uma identidade e num sentido de cidadania", introduz o pensamento.

Todas as pessoas que estão aqui querem que o Brasil dê certo. Esse campo da arte é um campo que quer edificar uma nação e eu acho que isso é um desejo das pessoas que vivem o dia a dia, das pessoas que mandam as crianças para a escola para estudar, dos pais, das famílias que lidam para que essa vida seja um lugar bom pra todo mundo, e esse ambiente cria essa atmosfera", acredita.

Encontros

A passagem de Krenak pela Bienal não se restringiu aos pavilhões do Centro de Eventos do Ceará. No último domingo (18), ele também esteve em visita à comunidade Jenipapo-Kanindé, no município de Aquiraz. O encontro com seus "parentes", como faz questão de ressaltar, foi puro acolhimento.

"Gostei muito de conhecer o território deles, e também de sentir a determinação da Cacique Pequena, de ter puxado a história do povo dela do anonimato e da negação de existência", diz.

Legenda: Ailton Krenak e a Cacique Pequena estiveram juntos na comunidade Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz
Foto: FOTO: BETO SKEFF

A atividade "Ó de Casa! Conversa sobre Hospitalidade e Resistência" contou também com a participação de Marion Bloem (Amsterdã). Os dois convidados foram recepcionados pelos integrantes da Escola de Cinema Indígena Jenipapo-Kanindé e membros da comunidade, que reunidos sob a sombra de um cajueiro, discutiram experiências nativas sob uma mesma perspectiva, mas em diferentes partes do planeta.

Dos irmãos daqui, Krenak carrega somente certezas.

Os Jenipapo-Kanindé passaram quase todo o século XX ressurgindo com uma disposição de permanecer no mundo enquanto tiver gente. Eu acho isso lindo. Eles trazem para esse concerto com os povos uma poética, uma cantoria, um toré e, obviamente, eles invocam os encantados. Tem uma constelação de seres que estão guiando eles e sustentando a passagem deles pela Terra. Isso é maravilhoso, aumenta a potência do pensamento indígena num mundo que está em disputa o tempo inteiro".

Na despedida, o escritor indígena leva o afeto e a acolhida das pessoas como o ganho mais permanente, "aquele presente que vai ficar em mim". E aposta nas programações da "Bienal fora da Bienal" e do espaço "Terreiro em Sonho", por onde passou, como potencializadoras de um evento que há muito deixou de ser uma "feira". "O livro está só como um pretexto pra todo esse encontro que acontece aqui no Ceará. Todo mundo tem o que dizer", finaliza.

Serviço

XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará
Até 25 de agosto, das 10h às 22h, no Centro de Eventos do Ceará (Av. Washington Soares, 999 - Edson Queiroz). Gratuito. Programação em bienaldolivro.Cultura.Ce.Gov.Br/Programacao/

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