O encontrar-se é fonte de empoderamento para mulheres do bairro Parque São Vicente

Ligadas pelo Grupo Produtivo Criart, elas reinventam retalhos, relações e a própria história

Escrito por Diego Barbosa , verso@verdesmares.com.br
Legenda: Sempre reunidas, integrantes do Grupo Produtivo Criart remodelam vidas e fazeres
Foto: Foto: Helene Santos

Cristina Nascimento, 42, tem fala resignada: quer viver. E, com esse desejo, pretende alcançar o maior número possível de mulheres para empreender existências. Juntas, contornarem a ordem irracional das coisas e deixarem vir à tona talentos, belezas, forças. Vida. É feito missão, aquilo que a gente carrega como tarefa para fazer diferença no mundo. Pode parecer longa, penosa. Jamais impossível.

O time que a artesã formou há dez anos comprova isso. Com sede no bairro Parque São Vicente, na região da Capital conhecida como Grande Bom Jardim, o Grupo Produtivo Criart congrega escuta, trabalho e sororidade por meio do encontrar-se, mirando no crescimento mútuo. São seis mulheres que, semanalmente, veem suas alegrias, angústias e realidades tornarem-se elo, fortalecendo o espírito humano e comunitário a partir de ações tão pequenas quanto potentes.

"Estamos há dez anos nesse movimento. O grupo começou em 2008 fruto do projeto Bonjarte, que fazia atividades com crianças e adolescentes e tinha uma comissão chamada 'Família'. Ela trabalhava a questão da geração de renda com as mães que iam deixar os filhos e, com isso, vimos uma oportunidade para começar algo nesse sentido", explica Cristina, idealizadora e coordenadora do Criart.

Legenda: A economia solidária é um dos pilares do grupo, com foco no artesanato e na culinária
Foto: Foto: Helene Santos

Com ela, outras três integrantes protagonizam as atividades: Maria Neiva de Maria, 45; Fátima Celestino, 62; e a mãe, Luzia Nascimento, 69, cuja casa há dois anos já não é mais apenas dela. Parte do domicílio tornou-se sede do projeto, após o término do contrato com a dona da residência à frente, onde outrora aconteciam os encontros. No recente lar, a ciranda de afeto e apoio continua e é amparada pela ternura entre as presentes.

Cuidado

Nas paredes, as criações dos "quatro elementos" - como se autointitulam - enfeitam as vistas de quem chega e as reuniões de toda semana. Nelas, se sobressai o cuidado depositado em cada pedaço de imaginação. São bonecas, tapetes, bolsas, mandalas, doces, biscoitos, sandálias, entre outros objetos, tradução bonita da vastidão de produtividade.

"Um dos nossos pilares é o da economia solidária. Recebemos muitas doações, inclusive de donos dos estabelecimentos do próprio bairro, e fazemos os produtos, vendendo nos terminais e em feiras. Como recebemos muito, chegamos a doar bastante também, porque valorizamos a questão da mulher. Uma tem que alimentar a outra", sublinha a coordenadora.

Fã declarada de Frida Kahlo, resultado de leituras sobre feminismo, Cristina conta que a artista mexicana inspira também as outras amigas: "A gente tem uma dinâmica, a do fogo. Em círculo, uma vai acendendo o fósforo da outra, tentando não deixar a chama apagar. Somos os quatro elementos, precisamos deles para fazer a mudança".

Dizeres

O criar para vender, portanto, nunca foi o objetivo principal dos encontros. É ali, no olhar que abraça e na mão que consola e orienta, que elas se reinventam. Dona Luzia, por exemplo, tem relato de conquista. Há dez anos, ela confessa jamais ter abertura para dialogar com o marido sobre questões que diziam respeito à própria condição de mulher, realidade transformada a partir do contato com outras companheiras e da participação em formações.

"Me casei, tive um bom casamento, mas, da parte dele, tinha que ser 'eu que mando, quem dá as ordens sou eu, você só tem obrigação de fazer'. E eu me acostumei, porque vi meu pai fazendo isso com a minha mãe. A convivência era essa. Mas Deus me apresentou à minha própria filha, que me deu força para pensar diferente", conta.

"Depois que me aposentei, ele não gostou, porque era para eu tá lá, no emprego, não em casa. Virei para ele e disse que até aquele momento eu estava presa, mas, agora, queria minha liberdade, uma liberdade honesta. Fui me socar no Criart pra ficar boa, já que até dos nervos eu tava sofrendo por conta dessa situação".

Legenda: A biblioteca do grupo é um dos detalhes que enchem os olhos de quem adentra o ambiente dos encontros. Títulos sobre feminismo e juventude são alguns que podem ser encontrados
Foto: Foto: Helene Santos

Hoje ela diz que chega a passar 15 dias fora para visitar a mãe, no interior do Estado, e conseguiu fazer com que o marido também se tornasse parte do grupo. "Ele faz de um tudo, ajuda muito a gente. Entende e apoia. Não está 100%, é verdade, mas saiu do zero".

Evolução percebida também por Fátima nos filhos. Há mais de seis anos participando do Criart, ela se enxerga hoje reconhecida por eles pelo galgar diário e incansável na busca pelos objetivos. "O meu mais novo até comemorou quando soube que eu ia ser entrevistada por vocês", confessa, entre risos.

"Eles já ajudam, se preocupam, bem diferente do 'cada um por si e Deus por todos' de antes. Existe um compromisso, uma responsabilidade, divisão de tarefas... Antes, era tudo comigo. Hoje eles já fazem a limpeza do quarto, lavam o banheiro, enchem a garrafa, vão no fogão e botam o almoço. Mudou muito e vai continuar mudando".

Maria Neiva também comemora. No caso dela, que diz ter um marido já aberto à escuta, a alegria veio por se descobrir ainda mais enquanto artesã. "Antes de entrar no grupo, sabia fazer crochê e fiz um curso de pintura. Foi a partir desse conhecimento que me interessei em somar aqui. Mostrando nosso trabalho nas feiras e terminais, receber um elogio é sempre muito bom para mim. É como realizo meus sonhos".

Renascimento

Dona Luzia conta que chegar ao atual estado de valorização do trabalho do grupo pelos moradores do bairro não foi fácil. No início do projeto, já com a intenção de envolver toda a comunidade nas ações, elas foram discriminadas. "Acho que eles pensavam que a gente tava pedindo pra gente, não pra dividir. Agora, não, eles mesmos chegam e até telefonam, dizendo pra ir buscar doações".

Legenda: Forças e talentos unidos em prol do bem de si e do outro
Foto: Foto: Helene Santos

"É a questão da voz da mulher, né?", emenda Cristina. "A voz que eu entendo que dizem é pra gente ficar calada, só obedecendo. Não aceitamos mais isso. Se estiver incomodando, a gente grita mesmo, seja em algo que acontece dentro do ônibus ou dentro da nossa própria casa. A questão da igualdade de gênero é quanto ao diálogo que a gente tem que ter com os homens, os companheiros. Porque os filhos percebem as violências e levam, por exemplo, para as suas namoradas, proibindo de usar saia curta. Por que elas não podem usar?", questiona a coordenadora.

"Até a gente acordar, fica pensando em qual roupa vai sair, porque já imagina o que pode acontecer lá fora. É um medo real e forte. Estamos aqui, então, com o nosso trabalho e união, para fazer com que isso mude, empoderando outras mulheres e mais ainda a nós mesmas", brada Cristina, em alto tom.

Estamos aqui, com o nosso trabalho e união, para empoderar outras mulheres e mais ainda a nós mesmas

Assim, de retalho em retalho, no tecido espesso da vida, a costura é feita firmemente, com a alegria de receber quem chega e a saudade dos que partem. É o dizer que estampa a madeira colorida na entrada da sede do Criart, convocando a entrar no círculo de amor e luta. Sem nunca esmorecer. "É que a gente tem que estar viva para sobreviver".

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