"Nós", de Jordan Peele, é cruel ao refletir a decadência da sociedade

Destaque entre as estreias da semana nos cinemas brasileiros, "Nós" (Us) entrega ao espectador um pesadelo visual provocativo, repleto de reflexões pertinentes sobre as relações sociais na atualidade e amplia o ânimo em torno dos recentes filmes de horror realizados em Hollywood

Escrito por Antonio Laudenir , Laudenir.oliveira@diariodonordeste.com.br
Legenda: Adelaide Wilson (Lupita Nyong'o) enfrenta os próprios medos
Foto: Divulgação

Considerada instituição, para muitos o pilar sagrado e única motivação em vida, a "família" é um tema recorrente no universo do cinema de horror. Quando um grupo de parentes enfrenta situações extremas na ficção, um certo sentimento de angústia e desconforto assume o controle da mente do espectador. A associação é imediata e a premissa de preservação do núcleo familiar dispara. Proteger e afastar ameaças, dar conforto e salvar a prole são reações instantâneas. É nesse fluxo comportamental, bastante enevoado, é verdade, onde a fértil imaginação de roteiristas e diretores divaga e estabelece reflexões preciosas na sétima arte.

Munido do tema e da configuração "família" nas mãos, entre outras provocações urgentes do contemporâneo, Jordan Peele entrega "Nós" (Us) ao público. Trata da segunda obra dirigida pelo também roteirista e produtor. Após o elogiado "Corra" (2017), no qual refletiu sobre racismo e política de maneira perturbadora, o diretor retorna aos holofotes com um pesadelo visual repleto de metáforas, obra aberta a generosa a leituras acerca da realidade.

Em "Nós", conhecemos a personagem Adelaide. Estamos nos anos 1980, em que a criança passeia ao lado dos pais por um parque de diversões localizado na praia de Santa Cruz, na Califórnia. Por desleixo dos familiares a menina acaba se perdendo em um dos brinquedos do lugar. Trata de uma casa assustadora e repleta de espelhos. Cenário incomum e desolador para olhar a si mesmo. É a memória desse trauma quem nos apresenta a personagem já adulta e situada nos dias atuais. É onde entra o trabalho irretocável de Lupita Nyong'o ("12 Anos de Escravidão") e a família fictícia formada pelos filhos Zora (Shahadi Wright Joseph), Jason (Evan Alex) e o marido Gabe (Winston Duke, de "Pantera Negra"). Todos igualmente ótimos nas atuações em tela.

Os quatro viajam para um pacato fim de semana na praia e quis o destino que o passeio fosse justamente pelo território no qual Adelaide guarda e ainda nutre repulsas. Mesmo a contragosto (Gabe até acha a reação da esposa exagerada), a mãe aceita revisitar o lugar. Tudo corre como o programado para os Wilson. Eles encontram velhos amigos, os Tylers, vividos por Elisabeth Moss ("The Handmaid's Tale"), Tim Heidecker ("Homem-Formiga e a Vespa") e as filhas gêmeas (Noelle e Cali Sheldon). Em determinado momento, o pequeno Jason termina por quase repetir o drama sofrido pela mãe. Já noite, em casa, a família protagonista se depara com o misterioso horror.

Sem qualquer explicação, quatro figuras iguais aos Wilson iniciam um insano ataque à residência. Aqui, Peele dá boas vindas aos filmes de "Invasão Domiciliar" e inverte violentamente a sensação de tranquilidade dos personagens. Algo lá fora, igual a nós, quer nossas cabeças. Como reagir diante daqueles duplos. Destes seres desprovidos de razão e sedentos por sangue. Esse é o choque motivador de "Nós". Aqui começam as desventuras dessa típica família norte-americana de classe média.

Habilidade

Para prender as atenções e costurar uma desesperada descida ao pior do ser humano, Peele trabalha com referências discretas e pontuais do cinema de horror, porém com natural domínio do produto do qual desenvolve. Ecos de "Iluminado" (1980), "A Noite dos Mortos Vivos" (1968), "Os Pássaros" (1963), só para citar algumas homenagens, são percebidos na projeção. Ao bom estilo da série "Além da Imaginação" (1958), o diretor agarra o espectador com uma série de eventos aparentemente indecifráveis. Habilmente brinca com a necessidade da audiência de buscar lógica, de ter respostas fáceis a situações bizarras. O medo do desconhecido, o temor de uma ameaça repentina são as ferramentas do realizador.

As cópias responsáveis pelos ataques podem até parecer com a família que conhecemos no início do filme. Estão conectados de alguma maneira, porém demonstram vidas inversas uma da outra. Os duplos carregam marcas e dores no corpo e na alma. São impiedosos e as razões dessa vingança são indecifráveis.

Legenda: Noite de vingança
Foto: Divulgação

Quando questionados quem eles seriam, a cópia de Adelaide apenas balbucia: "Somos americanos". Sem dúvidas, um dos momentos mais tenebrosos da produção. Para os atores, a narrativa entrega situações para interpretações em dois extremos. A batalha de Peele para manter o nível do roteiro é se distanciar do maniqueísmo. Nessa caça de gatos e ratos, até mesmo pessoas calmas e consideradas ilibadas podem tomar atitudes questionáveis.

"Nós" atiça uma série de temas e pouco se preocupa em resolvê-los. Fala sobre exclusão, traumas, talvez sobre um Estados Unidos tão preocupado em afastar com muros o próximo, o diferente. Outro dilema dilacerante é a reflexão sobre os outros "eus" que criamos ao longo da vida. Em tempos de redes sociais, onde o ser humano acostumou-se a criar um avatar de si mesmo, assistimos o embate entre o "eu" real e o virtual. Basta acessar qualquer caixa de comentários na internet para testemunhar discursos de ódio, entre outras posturas que nos fazem questionar se o autor faria aquilo tudo cara a cara. Olho no olho.

Jordan Peele provoca, diverte e seu "Nós" desenvolve uma alegoria sobre o apocalipse do homem atual. O dia no qual o "cidadão de bem" vai ter de enfrentar a versão pior dele mesmo. Aquela que ele assume quando tem em mãos um par de login e senha. O inimigo está mais próximo do que supomos.

Jordan Peele ganha espaço entre as feras do entretenimento

Legenda: Aos 40 anos de idade, o primeiro realizador negro a receber o prêmio de "melhor roteiro original" no Oscar busca projetos audaciosos
Foto: Agência AFP

Com o enorme sucesso de "Corra!" (2017), Jordan Peele passou a ser um nome forte na indústria cinematográfica. Ator, roteirista e produtor, construiu os primeiros anos da carreira na área da comédia. Repleto de referências do universo pop na bagagem, desenvolve em seus trabalhos uma visão de mundo por vezes amarga e caótica, porém com pitadas de bom humor na condução da trama. Filho de uma gerente de escritórios de Nova Iorque, que o criou sozinho, desde garoto mostrou-se um obcecado pelo cinema.

Famoso por esquetes do programa de humor "Key e Peele" , onde fazia imitações do presidente Barack Obama, Peele causou estranhamento na mídi quando anunciou o projeto de um filme de horror. Tratava de uma produção de baixo orçamento, avaliada em 4,5 milhões de dólares. Aos poucos, "Corra!" passou a atrair atenções da crítica e chegou a ser aplaudido no Festival de Sundance. Com boas vendas nas bilheterias norte americanas protagonizou um dos mais bem-sucedidos filmes de estreia de um diretor. Era apenas o começo. A indicação ao Oscar e a consequente vitória na categoria de "roteiro origional" ampliaram o universo do realizador. Da TV para Hollywood.

Ao lado do parceiro Keegan-Michael Key trabalhou em "Keanu: Cadê Meu Gato?!" (2016), na série "Fargo" (2014) e na já citada "Key e Peele" (2012) . Animações como "Big Mouth" (2017), "Frango Robô" (2001) e "Rick and Morty" (2015) também estão no currículo. Com o êxito de "Corra!" ganhou moral para uma filmagem mais ambiciosa. Entregou "Nós" (2019) e o orçamento mais robusto está todo na tela. O assumido nerd triunfava mais uma vez no show business.

Para os próximos anos, a agenda do realizador segue intensa e repleta de desafios. Nas telonas, ainda em 2019, Peele vai ser visto nos filmes "Abruptio" (2019) e "Toy Story 4", onde entrega a voz do personagem Bunny. Na área dos roteiros, prepara uma releitura para o filme de horror noventista "O Mistério de Candyman" (1992). O remake será realizado por sua produtora, a Monkeypaw Productions.

Entre os projetos, um dos mais aguardados é a participação como apresentador da nova versão de "Além da Imaginação". Pensou em recusar a empreitada, com medo de decepcionar a memória de Rod Serling (1924-1975), apresentador original, de quem é fã declarado. A trajetória de Peele segue intensa e cuidadosa.

 

 

 

 

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