No filme 'Coringa', vilão de Joaquin Phoenix é fruto de uma sociedade desigual e doente

Aguardado filme solo de um dos personagens mais populares dos quadrinhos, adaptação traz referências diretas ao cinema de Martin Scorsese. O longa de Todd Phillips é um retrato pessimista do abandono social e alerta para o amparo psicológico

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
Legenda: Mídia, falta de políticas públicas de saúde voltadas aos mais pobres, facilidade de acesso a armas e decadência das relações são alguns dos combustíveis para a escalada de ódio do palhaço

A estreia de Todd Phillips na direção foi com o documentário “Hated: GG Allin & the Murder Junkies” (1993). Aos 23 anos, o iniciante tinha diante de si a missão de retratar uma figura dada aos extremos. GG Allin (1956-1993) era uma máquina “freak” das mais explosivas. Soldado de um apocalipse solitário, combinava sonoridade violenta e medonhas apresentações ao vivo, repletas de fezes, cortes no rosto, entre outras tintas pouco palatáveis. O trabalho detalha bastidores e testemunhas daquele universo grotesco e agressivo.

O tempo se foi. Após guiar uma série de filmes metidos a engraçados, o cineasta retorna ao cerne de outra criatura deslocada. Carregou a responsabilidade de investigar um dos personagens mais populares dos gibis. O “Palhaço do Crime” ganhava um intérprete de peso, Joaquin Phoenix, ator dado a rasgar os próprios limites em prol do jogo cênico.

Do ponto de vista comercial, era mais uma chance para o Coringa. Uma nova tentativa de DC/Warner limparem a barra depois de adaptações de quadrinho toscas, infantiloides e regadas a CGI com selo “Chapolin no aerolito” de qualidade. Caso mais notório foi “Esquadrão Suicida” (2016) e a equivocada leitura de Jared Leto ao criminoso.

O roteiro escrito por Phillips e Scott Silver agarra a necessidade de reconstruir o Joker com uma pegada mais realista. Um produto próximo da cartilha Christopher Nolan e distante das ideias do “visionário” Zack Snyder. As poucas informações do set e imagens de divulgação sugeriam o arqui-inimigo do morcego inserido num ambiente próximo de “Taxi Drive” (1976) e “Rei da Comédia” (1981), ambos de Martin Scorsese.

Legenda: A excelente reconstrução de época inclui das pichações nos metrôs às fachadas dos comércios daquela década

Nesta Gotham City de 1981, o lixo se acumula nas ruas e uma peste de ratos inunda a cidade. Desemprego e violência são os sintomas de uma sociedade decadente, na qual o abismo entre ricos e pobres só se agrava. Neste cenário, Arthur Fleck (Phoenix) sobrevive como palhaço de rua e trabalha realizando divulgação de umas lojas decadentes do Centro.

Em casa, cuida da mãe doente, Penny, vivida por Frances Conroy. Na esperança de dias melhores, ela escreve cartas para seu ex-empregador, o magnata Thomas Wayne.  (Brett Cullen). Em paralelo, o único filho nutre o sonho de ser um grande nome da comédia stand-up e quem sabe participar do programa apresentado pela estrela Murray Franklin (Robert De Niro). 

Ambientes

A excelente reconstrução de época inclui das pichações nos metrôs às fachadas dos comércios daquela década. Pouco a pouco somos conduzidos e tomados pelas angústias de Fleck. O drama construído por Phillips nos exige empatia do maltratado protagonista que apanha e se sente ressentido por tanta agressividade. O tratamento médico inclui sete tipos diferentes de medicamento. Mesmo entorpecido, os pensamentos do comediante frustrado continuam confusos e sombrios. Algo está prestes a explodir e a escalada angustiante só se agrava. 

Legenda: Construção do caráter manipulador do personagem é desenvolvido nos detalhes

O corpo magro e frágil de Phoenix é o depósito visual para os constantes delírios e quedas daquele homem tachado como esquisito. Outro senão cruel e até irônico reside na relação de Fleck com o ato de rir. O que para muita gente simboliza felicidade e anúncio de prazer reserva outra conotação. É sinônimo de dor e vergonha.

Aquela Gotham suja e cínica não é território para sonhos. Becos imundos, fétidos e pouco iluminados exalam a decomposição psíquica do futuro Coringa. Violência é respondida com mais força. Após apanhar de uns moleques, o cara esquisito ganha de um amigo de ofício um revólver. “Eu não posso ter uma arma”, tenta explicar Fleck diante de um lapso de consciência e lucidez.

Complexidade 

Phillips estampa a história de um subproduto social. O Coringa na visão do diretor é uma reação do esquecimento e da degradação das relações. Diferente de GG Allin, a criatura desenvolvida por Phoenix se alicerça em eventos fictícios, que remetem a um criminoso dos mais perigosos e complexos, desenvolvido ao longo dos mais de 70 anos por inúmeros realizadores. A figura altruísta de Thomas Wayne é substituída por um rico esnobe e falastrão, que enxerga na pobreza a chance de dominar o espectro político. 

A necessidade de tratamento e amparo psicológico se somam ao debate necessário em torno do desarmamento. São temas de discussão necessários diante de uma peça tão dolorosa e violenta. “Coringa” entrega outro patamar. Exige do filão “filme de quadrinhos” produtos menos preguiçosos. O sorriso aqui foi de puro nervosismo. 

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