Neste Dia Nacional da Cultura, jornalistas avaliam as diversas faces do setor

A data é comemorada em virtude do aniversário de Rui Barbosa

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: O filme “Bacurau” (2019) levou multidões ao cinema, causando críticas a favor e contra
Foto: Divulgação

Estabelecido por lei em 1970 e, desde a data, celebrado anualmente, o Dia Nacional da Cultura nasceu em virtude do aniversário de Rui Barbosa (1849-1923). A atuação plural dessa personalidade - atuou como jornalista, diplomata, escritor, político e no âmbito do Direito - oportunamente reflete a amplitude do panorama cultural em solo brasileiro. Por aqui, emerge diversidade de credos e expressões, práticas e abordagens, cuja abrangência exige um olhar que não se limite a enxergar o óbvio. É preciso ir além e considerar que, diariamente, o cenário se agiganta pela riqueza de um País macro em vários sentidos. Pensar sobre o tema é urgente.

Nessa perspectiva, o caderno Verso traz, nestas páginas, a opinião de jornalistas que já atuaram no posto de editores de Cultura do Diário do Nordeste. Profissionais que, com distinta maneira de encarar o referente contexto, analisam as diversas faces do setor, especialmente considerando a situação pelo qual passa nesses tempos sombrios de Brasil.

Professor de Jornalismo da Universidade Federal do Cariri, José Anderson Sandes parte da complexidade de definição do termo para mergulhar nos diferentes meandros que as expressões criativas atravessam. O jornalista enumera fatos que contemplam desde discussões sobre as linguagens artísticas até o tempo "envolto em brumas" no qual nos encontramos, de "tantas avenidas online, impactos tecnológicos, de comportamentos e narrativas estranhas".

Por sua vez, Dellano Rios, editor de Opinião do Diário do Nordeste, considera o histórico de negligência pelo qual a pasta sempre passou, sublinhando a gravidade do prognóstico e citando, dentre muitos casos, o da Biblioteca Pública Menezes Pimentel, há cinco anos fechada para reforma e ainda sem data de reabertura.

Se a cultura constrói-se dia a dia, refletir sobre ela também é sempre. Celebremos a data com consciência.

Cultura minada

Por José Anderson Sandes

Definir cultura, impossível. Definir arte, impossível. Agora, sem elas não teríamos percorrido nenhum processo civilizatório. São várias as definições dependendo dos seus contextos de tempo e espaço. A necessidade da arte - tendo a arte no bojo de qualquer processo cultural - é um dos imperativos da humanidade. Cultura de massa, indústria cultural, grande arte, pequena arte, erudito e popular, global e local, kitsch, trash, cult, naif, modernos e pós-modernos são referências criadas e imaginadas tanto pela crítica cultural e acadêmicos, quanto pelos próprios artistas e seus muitos manifestos, principalmente os lançados desde o início do breve Século XX.

 No Brasil, para mim, ainda o mais importante é o da Semana de Arte de 22, quando um grupo de artistas paulistas rompeu com as linguagens artísticas passadistas, em meio a avanços tecnológicos, e caminhou por outras avenidas, inspirando-se no manifesto Futurista do poeta italiano Felippo Marinetti.  Na época, a palavra "Futurista"  carregava muitos e diferentes sentidos, motivo de desavenças entre modernos e conservadores. E entre os próprios modernistas.

Os tempos dos manifestos acabaram-se, e o futurismo hoje virou também passadismo. E neste início do Século XXI tudo ainda encontra-se envolto em brumas, tempo de tantas avenidas online, impactos tecnológicos, de comportamentos e narrativas estranhas. 

Parece que tudo fere nossos sentidos -  Arte insensível? Invisível? Degenerada? De bom gosto? De mau gosto? Sei não, sei não. Nada aponta para o futuro. Nem próximo, nem distante. Do Estado Novo passando pela Ditadura Militar e, agora, pela democracia sempre existiram reações de diversos grupos à palavra cultura. Isso no Brasil. E do outro lado  do Atlântico também. 

Nada mais oportuna nos dias de hoje, de tantos extremismos, a frase atribuída a Herman Göring, chefe da Gestapo, na verdade uma peça publicitária do governo Nazista: 'quando ouço alguém falar em cultura, saco o meu revólver'.

Ah, se essa frase fosse mantra apenas dos gabinetes de Brasília. Mas não é o que parece. Só dar uma espiada nas redes sociais. Isso é o que é assustador. Sabemos da história e seus efeitos devastadores. O apagar das luzes da Ditadura não foi fácil para as artes e artistas. Estávamos em plena abertura, mas a linha dura não queria soltar o osso - ameaça de bombas nos teatros, em bancas de jornais e revistas, explosão do Riocentro (essas cenas eu vi e vivi).  Antes, em pleno Ato 5, tivemos terra devastada no campo cultural e em outros campos da vida.

Mesmo assim, a cultura se moveu. E se moveu muito. Ao contrário de hoje. Pelo menos, na minha percepção.  Talvez, seja muito cedo para interpretar esses novos velhos tempos. Mas um fato se descortina para o futuro: censura, desmonte, desrespeito com as minorias, com  artistas, cortes em leis do mecenato...

Até a primeira-dama do nosso  teatro, Fernanda Montenegro, entrou na roda. Roda nada cultural, tampouco de poesia ou de brincantes. Ela foi chamada de "sórdida", "intocável" e "mentirosa" só porque se posicionou contra o poder de plantão. "Não sei por que o Brasil caminhou para o nada", disse.  Numa entrevista à Folha de S. Paulo, Milton Nascimento causou rebuliço ao afirmar que a música popular brasileira estaria uma merda. A polêmica foi boa. Como, acho, toda polêmica no campo cultural.

O filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho, levou multidões ao cinema. Fenômeno. Causou tantos efeitos, à direita e à esquerda, críticas a favor e contra, que notei um novo movimento da arte brasileira. Fenômeno até agora passageiro.

No Planalto Central do Brasil, assistimos passivamente a um filme trash (com desculpas a  Zé do Caixão) de muita precariedade técnica e estética. Dos códigos anunciados, nada se salva. Algo simplista como  "meninos vestem azul, meninas vestem rosa". 

Do Manifesto Futurista, de 1922, ao Future-se, de 2019, vejo o desmonte tijolo por tijolo de anos de construção de estéticas e linguagens artísticas. Lanço mão de uma imagem do belo poema "O cão sem plumas",  de João Cabral de Melo Neto: "Na passagem do rio/difícil é saber/onde começa o rio/onde começa a lama. Ou seja, é preciso limpar o rio de tudo o que o mantém imóvel. Isso é preciso".

O silêncio do canário

Por Dellano Rios

Legenda: Prédio da Biblioteca Pública Estadual Governador Menezes Pimentel, no Dragão do Mar
Foto: JL Rosa

Não é tarefa fácil encontrar alguém que, com honestidade, sustente que vivemos uma boa fase. Até o otimista se verá forçado a admitir, sobrando-lhe espaço apenas para falar que dias melhores virão ou mesmo que a transformação já está em curso, sem que os resultados se anunciem no horizonte. A tese mais ou menos se equilibra em algumas áreas; em outras, é insustentável. É o caso deste território heterogêneo em que se constitui a cultura.

O ocaso da pauta cultural vai muito além do tratamento recebido em âmbito federal, onde é tratada de forma ora negligente, ora abertamente hostil pelo Governo. Tão grave quanto é a pouca atenção que historicamente recebe de estados e prefeituras, num caso raro em que direita e esquerda coincidem em sua escolha do que não priorizar. Claro, há aqui e acolá entes públicos fazendo um bom serviço - quando comparado à média da área. Se a comparação é com outras pastas e áreas, a cultura sempre vai parecer a prima pobre. E fútil, já que, nas crises, seu caixa inexpressivo costuma ser saqueado antes mesmo de cortar as gorduras de quem as tem.

A exemplo de datas como o Dia Internacional da Mulher e o Dia da Consciência Negra, o Dia Nacional da Cultura não deve ser entendido como um momento festivo, de agitar bandeiras, trocar sorrisos e festejar de consciência tranquila. Seria cinismo ir por aí. É imperativo que se converta em um marco para a crítica e a autocrítica, institucional e individual. Afinal, o que se vê, em regra, é uma negligência com as políticas, equipamentos e expressões culturais, por parte das administrações públicas; e apatia por parte de muita gente que, sem desdenhar da importância da cultura, a ignora no dia a dia. O caso não é de se abraçar o pessimismo. Contudo, tampouco é útil fazer vista grossa para o prognóstico grave.

Ou não é grave a situação, aqui no Ceará, da Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel? Há cinco anos fechada para reforma, segue sem data de reabertura, enquanto funciona em espaço provisório. Claro, não se pode tomar a atuação do Estado no campo da cultura pela forma que tem tratado nossa maior e mais a antiga biblioteca pública. No entanto, é possível celebrar o que há para ser celebrado com a insistente sombra do prédio fechado? A falta é também simbólica: não há representação melhor da cultura do que livro.

Transformações são urgentes, e exigem contundência. Não é o caso de apenas reparar. Para voltar ao exemplo dado, é não só necessário reabrir a centenária biblioteca, como construir novas e, de preferência, seguindo uma ideia de interiorização. A cultura é transversal, diz respeito a todos e se comunica com todas as áreas. É o alimento civilizacional, e o que nos capacita a sonhar e criar. Quem acredita que é prescindível, não está atento a seus movimentos ao longo da história. É nela que se antecipa o que virá, mesmo nos mais distantes territórios com os quais ela faz fronteira. E, saliente-se, ela faz fronteira com todos, pois todos, de alguma maneira, fazem parte dela.

O poeta Ezra Pound disse que "os artistas são a antena da raça". Talvez a arte e a cultura estejam mais para canário do que para antena. Explico: no passado, os mineiros levavam consigo esse pássaro pois, em caso de presença de gases tóxicos, o bicho morria antes e essa era a senha para os demais saírem dali. Não é de hoje que os canários da cultura vêm morrendo. O problema é que continuamos na mina.

Melhor ouvir o silêncio do canário.

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