Maria da Penha Silveira e nenhum canto a silenciar

Vinte anos a ocupar diferentes espaços da cidade enquanto pessoa em situação de rua não contiveram a ânsia da mulher de seguir cantarolando

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@verdesmares.com.br
Legenda: Maria da Penha ainda é presença certa em frente ao prédio da Acal, onde ficou durante mais tempo, a prestar apoio aos colegas
Foto: Foto: Natinho Rodrigues

A complicação de encontrar Maria da Penha Silveira, 50, para realizar simples conversa é justificada. É mulher de espírito itinerante. Encontra alguém em algum lugar, conversa, e, de repente, faz movimento pacato, mas intenso, com os pés. Já está a caminho de outras estradas, contando mais histórias, absorvendo e deixando um tanto.

Possui semblante de gente disposta a criar elo fácil e duradouro, temperamento que a fez sobreviver durante duas décadas na rua angariando amizades de toda ordem. À época, tinha 15 anos e, no percurso, um passado de relacionamento conturbado com o ex-marido, já falecido, com quem teve três filhos.

"A gente brigava muito e como, na época, eu era muito nova e não tinha muita experiência, peguei e me separei. Não podia ficar na casa da minha mãe, porque era bem pertinho da casa onde a gente morava. Aí minha última opção foi vir pra rua", situa, explicando que nasceu em São Paulo e foi entregue pela mãe biológica, devido a problemas financeiros, a uma família.

Obedecendo ao espírito de desbravamento, morou na Praça da Bandeira, do Ferreira, da Gentilândia e na Coração de Jesus, até aportar em frente à Acal, onde ficou durante mais tempo. "Foi o local que eu achei mais calmo", revela. "Nesse tempo, existia a abordagem de rua, e uma pessoa que trabalhava nessa área me chamou para o Centro Pop, pois tinha uma chance de eu conseguir ficar em um abrigo. Foi daí que comecei a ir nesse espaço".

O ramo das Artes Cênicas foi o que mais atraiu Penha para mergulhar na arte. Não à toa, começou a ser convocada para participar de encenações, "viram que eu queria alguma coisa". Também se interessou em aprender percussão e, quando havia alguma apresentação envolvendo música, ela era a escolhida para cantar, algo que diz em baixa voz. A timidez, no momento da entrevista, supera o desejo de entoar algo, qualquer canção que seja.

Nova vida

"Um dia, cheguei no Centro Pop e uma pessoa me chamou dizendo que meu aluguel social tinha saído. Na mesma hora, saí do Espaço Noturno, o abrigo onde eu tinha ficado com meu novo marido, e aluguei um canto pra mim na Liberato Barroso", referencia.

Atualmente, mora em um apartamento na Avenida Leste-Oeste, conquistado a partir de semelhante processo, e há pouco tempo estava empregada no mesmo local que Wagner Gonçalves, o outro perfilado neste especial, trabalhou.

"Agora, eu tô desempregada. Mas ouvi falar que vai abrir uma Casa de Passagem. Já entreguei meu currículo, vamo ver se vai dar certo. Eu gosto de trabalhar, sabe? Não gosto de ficar parada, não".

Penha conta que sofreu na rua. Entre tantas dores - por ser muitas vezes escanteada devido à recusa de participar de algumas práticas ilícitas dos colegas, coisa que nunca compactuou - talvez a que mais lateja na memória seja a de ser acordada por funcionários das lojas em cuja entrada dormia.

"Ali, na Praça do Ferreira, quantas vezes fui acordada com gente batendo pra eu levantar... Quando você vive em situação de rua, as pessoas lhe ignoram. Teve um momento que eu disse, 'meu Deus, o quê que eu tô fazendo da minha vida?'. Pedi a Deus que me mostrasse um emprego. No fim das contas, deu tudo certo".

Distante dessa situação há cinco anos, aqui e acolá ela retorna para rever os companheiros de estrada. Ainda há forte essa conexão, principalmente pelo desejo de vê-los diferentes, igualmente tocados pelo sentir que a arte permite vivenciar. "Eu vivia daquele jeito porque não tinha como ser diferente. Mas depois que as portas foram se abrindo, que foi tudo melhorando, vi que aquilo ali não era pra mim, que não vivia de verdade naquela vida".

Orgulho

Quando uma eventual pergunta sobre sonhos toma conta do breve diálogo, não há gaguejo. "É ter um emprego e trabalhar até o dia que Deus quiser, pra mim conseguir dar alguma coisa pros meus filhos e pras minhas netas. Pra eles terem orgulho de mim algum dia, sabe? Só isso. E saúde. Você sabe que, graças a Deus, isso aí quem se encarrega de dar à gente é Deus. Mais nada. Tá tudo bem comigo e tô levando a minha vida".

Levando ainda a cantarolar, mesmo sem demonstrar o talento quando da apuração desta reportagem. É que prefere o fluir natural da voz ao ecoar algumas das músicas da população de rua que aprendeu no decurso do tempo. Algo assim sobre superar as barreiras da rotina e ir à luta para seguir adiante. Sempre com uma canção em mente.

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