Marcos Valle lança o disco ‘Cinzento’ e reafirma boa fase na carreira

Vivendo intensa leva de lançamentos e projetos, cantor esmiúça a força dos grooves e o momento de censura às artes no Brasil

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
Legenda: "Cinzento” explora o minimalismo dos arranjos e traz um Marcos Valle em conexão com a política e a cultura brasileira dos últimos 50 anos
Foto: Jorge Bispo

A estrada de Marcos Valle nos últimos anos tem sido luminosa. Prestes a completar seis décadas de batente, o músico carioca encabeça uma contínua safra de lançamentos. A onda é criar e o processo coletivo é bem-vindo. “Como as ideias tão chegando muito bem chegadas, eu não paro. Negócio é seguir em frente”, assume. Após o balanço irresistível de “Sempre” (2019), o veterano retorna às pistas com o álbum “Cinzento”

Lançado pela Deck, o trabalho resulta de concepção minimalista, munida de instrumentação reduzida dentro do Estúdio Tambor (RJ). A pegada foi de leveza e camaradagem. “Foi tudo gravado no Rio de Janeiro, o estúdio é perto da minha casa”, explica um dos camisas 10 do suingue nacional. A produção e arranjos são do próprio Valle e “Cinzento” foi possível graças a uma experiência recente com a gravadora carioca. 

Em 2018, o músico se uniu a Roberto Menescal na produção de “O Tom da Takai” para a Deck. “Trabalhei e fiz uns arranjos. Gostei muito do ambiente, do estúdio”, resgata. No registro, Fernanda Takai ilumina canções raras de Tom Jobim (1927-1994). Encharcado do clima sessentista da bossa, o repertório uniu a voz inconfundível de Takai ao violão e pianos de Menescal e Valle.

Entre uma gravação e outra, o diretor artístico da Deck, Rafael Ramos, sugeriu a ideia de um disco solo no futuro. Das felizes coincidências da vida, naquela altura, Rafael trabalhava com a Polysom na reedição em vinil de “Previsão do Tempo”, cultuado álbum de Valle composto no distante ano de 1973. 

Refletir em torno do processo criativo de “Previsão do Tempo” foi decisivo às pretensões do multi-instrumentista. Ambos os registros guardam equivalências. Algo perceptível pelas escolhas criativas e pelo momento político em que foram concebidos. 

Legenda: Segundo registro gravado por Valle e o trio Azymuth
Foto: Divulgação

Lançado pela extinta gravadora Odeon, “Previsão do Tempo” previa que o mar não estava para peixe naquele início dos anos 1970. A censura do governo militar instaurado no País, em 1964, explicava as tintas pesadas da obra. Décimo da carreira, o material foi produzido por Milton Miranda e trouxe 12 faixas, em grande maioria assinadas por Valle e pelo irmão Paulo Sérgio Valle.

Junto ao groove do trio Azymuth, o carioca desenhou as ondas obscuras daquele Brasil com muito samba, funk, soul, baião e jazz. Com o grupo carioca, formado por José Roberto Bertrami (teclado e arranjos), Alex Malheiros (baixo) e Ivan Conti “Mamão” (bateria), Valle já havia trabalhado em “O Fabuloso Fittipaldi”. Porém, a escolha de Valle, hoje, passa longe de querer imitar ou inventar uma continuação direta daquele álbum. Durante a conversa, o pianista destaca as coincidências responsáveis por estabelecer pontes entre as obras.

“Aquele disco tinha duas características hipnotizantes. Uma, que não tinha muito instrumento. Nada de orquestração muito grande, mas tudo no lugar certo. Muito cheio desse grooves e balanços que eu gosto de fazer, dessas misturas que acabo criando. Então, queria repetir isso aí. Outra, ‘Previsão do Tempo’ foi feito quando havia aquele problema de censura muito grande. Hoje, embora estejamos em outra situação, a censura continua forte. Juntando uma coisa com a outra, resolvi que 'Cinzento' seria exatamente o que eu queria fazer”, assevera o cantor.

Encontros

“Cinzento” traz parcerias com Moreno Veloso (na faixa “Redescobrir”), Bem Gil (“Se Proteja”), Kassin (“Lugares Distantes”) e Domênico Lancelotti (“Pelo Sim Pelo Não”). Valle lembrou de “Raros Rastros”, colaboração dele com Zélia Duncan. Composta em 2010, a faixa continuava inédita até então. Outra melodia foi enviada na sequência ao irmão Paulo Sérgio Valle. O parceiro de longa data escreveu “Nada Existe” e garantiu assinatura no trabalho. Outro reencontro acontece com Jorge Vercillo, no registro “Só Penso em Jazz”. 

“Na minha cabeça, veio a ideia de pegar para letristas, artistas que admiro, mas que são de outra geração e tenham me dito serem influenciados por ‘Previsão do Tempo’”, argumenta. Por intermédio do jornalista e produtor Marcus Preto, veio o contato com o rapper Emicida. 

Legenda: Refletir em torno do processo criativo de “Previsão do Tempo” foi decisivo às pretensões do multi-instrumentista
Foto: Jorge Bispo

Foi jogo ganho. “Ele é danado, um poeta incrível. Tem essa coisa do rap, ele é muito musical. Quando fizemos a música, criei a melodia toda. Quando chegou a esse meio, pedi pra ele encaixar um rap. O resultado não é um rap cantando. Ele fez uma melodia, junto com a letra, maravilhosa. Realmente, um craque”, fala Valle sobre a participação do paulista na faixa que nomeia o novo rebento. 

Momento

Desde a estreia em 1963, Valle se destaca por uma musicalidade em contínuo contato com outros ritmos. Imerso na eclosão da Bossa Nova, o artista foi encontrando um território próprio dentro da música brasileira. Rock, jazz, black music, entre outras referências, emolduram a bússola inventiva do músico. 

“Minha família é nortista. Meus pais são paraenses e meus tios vieram do Ceará. Esse sangue do baião, essa coisa toda, isso sempre me tocou. O baião foi o primeiro ritmo que marcou minha vida quando eu era muito criança, coisa de seis anos de idade. Sempre gostei de Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga. Essa coisa do ritmo sempre foi muito forte nas minhas músicas, assim como a melodia. Daí vem Jobim, Caymmi, música clássica”, enumera as inspirações. 

Entre passado e presente, Valle segue dando o recado com propriedade. O cara sabe a hora certa de entrar na água e enfrentar as ondas. “Cinzento” é mais um alerta. A semelhança da confecção entre os discos de 1973 e 2020 é grande. Assim como a nuvem pesada de censura nos dias de hoje.

“Acabei botando o nome ‘Cinzento’, muito por conta da música produzida, mas também por trazer esse clima desagradável para as artes que estamos vivendo. Uma briga, um negócio muito estranho que não acho normal no povo brasileiro”, divide.

Valle segue faminto e quem ganha é o ouvinte. “Sou feliz de trabalhar com música. Acho um privilégio. Quando você pensa em tantas pessoas que nem trabalho têm. Sempre tenho vontade de fazer, não gosto de ficar parado. Quero trabalhar, fazer shows, gravar. As ideias vêm e vou aproveitando”, conclui.

Foto: Foto: Jorge Bispo

 


 

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