História do músico Bosco Farias destaca caráter inclusivo do Carnaval

Cego desde a infância, o ritmista do Bloco Camaleões do Vila aprendeu a acompanhar a bateria para a realização dos quatro desfiles do Pré-Carnaval este ano

Escrito por Felipe Gurgel , felipe.gurgel@diariodonordeste.com.br

A reputação democrática do Carnaval já é tradição. Chega fevereiro (ou março) e os quatro dias de folia trazem um apelo de festa preparada e curtida por todos. Nas entrelinhas da celebração, algumas histórias chamam atenção e dão um passo além, em direção ao caráter inclusivo do período carnavalesco. Mostram ainda que o festejo pode envolver, também, a conciliação das diferenças.

Atuante no Pré-Carnaval de Fortaleza há nove edições do evento, o bloco Camaleões do Vila (ligado ao espaço Vila Camaleão, no Meireles) desfilou quatro vezes no período este ano. Sensível às questões sociais, o grupo incluiu o músico Bosco Farias (34) na formação da bateria em 2019. Cego desde os 12 anos, Bosco já cantava em uma banda de pagode, quando conheceu o bloco em 2018.

>"Minha cegueira não é nenhum problema pra mim", reflete Bosco

Bosco conta que não sabia de outro músico cego com experiência semelhante, antes de aprender a tocar como ritmista. "Até porque é uma coisa contraditória, né? Um som muito alto, para uma pessoa que tem como principal sentido a audição", avalia.

Além do apoio de toda a organização do bloco, Bosco teve suporte direto de Ítalo Nobre (38), um dos diretores da bateria do Camaleões, e de Rafael Gomes (38), ritmista do grupo há sete anos. Ítalo desenvolveu os sinais para o músico assimilar as pausas e outros movimentos que os batuqueiros precisam lidar. E Rafael serviu de "guia" para amparar a caminhada de Bosco durante os cortejos no Pré-Carnaval.

"O Bosco teve um dever de casa: tem algumas 'bossas' (paradas) que cabem em determinadas músicas, e ele tinha de saber quais bossas iam cair em algumas músicas. O restante das pausas e os desenhos foram feitos com toques em partes do corpo dele, indicando as viradas da bateria, por exemplo", explica Ítalo.

Guia

O passo seguinte para integrar Bosco à bateria do bloco foi arranjar um guia, no sentido de orientar a caminhada do músico durante os cortejos. Veterano do Camaleões do Vila, o ritmista Rafael Gomes não pôde acompanhar todos os ensaios durante os sábados de 2018 e ficou de fora da formação da bateria.

Por sugestão do próprio Bosco, Rafael virou seu guia na avenida. "No último ensaio que teve, antes do primeiro dia de Pré, ainda tinha dúvida de como ia fazer pra tocar andando. O Ítalo falou: qualquer coisa o bloco vai pagar uma pessoa pra te guiar", recapitula o músico cego. "Na verdade, foi o Bosco que me guiou, e não o contrário. Ele foi me ensinando como ia fazer", completa Rafael.

Oficina

Na última quarta (27), Bosco Farias e vários ritmistas do Camaleões do Vila encerraram o ciclo do Pré-Carnaval 2019 na Associação dos Cegos do Estado do Ceará, bairro São Gerardo. No local, o grupo conduziu uma oficina para alunos e associados cegos, apresentando a forma e a sonoridade dos instrumentos da bateria.

Legenda: Bosco Farias contou com o auxílio dos ritmistas do bloco Camaleões do Vila para adaptar os movimentos e as paradas da bateria de samba
Foto: Foto: Rodrigo Gadelha

Para pontuar o ciclo, o presidente do bloco, Tiago Nóbrega, recapitula a vocação do grupo para temas sociais (bem como o "tráfico de pessoas" e "talentos da periferia" realizados em anos anteriores) e comemora ainda a adesão dos ritmistas e do público para o tema de 2019: a doação de sangue. Além disso, o dirigente aponta outra novidade, a criação do "filhote" do Camaleões: o bloco "Selvagens convida Camaleões" (em parceria com a banda de rock Selvagens à Procura de Lei).

"Este ano foi um desafio bem maior, porque não tivemos o apoio da Prefeitura via edital. Não fomos habilitados. Mas com a união dos ritmistas e diretores, conseguimos ter criatividade e, na minha opinião, foi um Pré excelente", observa Tiago.

O Camaleões do Vila retoma aos ensaios após a Semana Santa, prevê o presidente, no galpão do Reggae Club (entorno do Centro Dragão do Mar, Praia de Iracema). "Próximo ano vai ser nosso décimo Pré-Carnaval. Mas vamos tirar férias agora, que ninguém é de ferro", complementa .

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