Getúlio Abelha comenta o Carnaval, vida em Fortaleza e a urgência de lançar o primeiro disco

Munido de performance, videoarte e de leituras afiadas da divulgação via redes sociais, cantor ataca com single e clipe de 'Vá se Lascar'. Processo criativo do piauiense revela ácido olhar do cotidiano

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
Legenda: Nesse ano, Getúlio deve rodar o Brasil: "Vou voltar para outras cidades esse ano, só que com mais consistência, organização, maturidade e com a minha banda"
Foto: Camila Lima

Verso: Você tem essa bagagem de unir mídias e linguagens. Essa coisa do analógico e do digital. Se apoderar desses meios é a forma de fazer o teu som?

Getúlio Abelha: Sim. Na verdade, comecei a compor por achar que na música eu teria mais liberdade de fazer isso. No teatro tem a limitação, por ser um lugar pouco acessível para muita gente. No cinema, quando você está dentro de um circuito, tem que estar participando de festivais totalmente fechados, onde só um grupo de pessoas vai. Aí, na música, pensei na possibilidade de trabalhar com o audiovisual, com direção de arte, de cenas e conseguir alcançar mais pessoas com isso. Tipo, ir pra rua mesmo, constantemente, cada vez que eu lançar música. Fazer show em praça, em lugar fechado, aberto. No Mondubim, na Barra, no Centro. Então, a música foi mais uma escolha estratégica base, só para poder conseguir trabalhar com todas as outras coisas que estou a fim.

V:É, mas se rolar de fazer um filme, uma peça ou instalação...

GA:Sim. Estou me coçando há muito tempo, querendo fazer uma peça novamente. Mas, montando CD ao mesmo tempo é muito difícil e trabalhoso. No meu caso, participo em todas as etapas. Participo não, dirijo mesmo. Musicalmente eu faço a letra, a melodia. Aí, quando o produtor musical está trabalhando estou do lado dele dirigindo.

V:Trabalhar o single é mais fácil de controlar, de ter o domínio do processo?

GA: Na real, queria ter uns 15 singles lançados, mas não tenho dinheiro, essa é a verdade. Com dinheiro você resolve. Se eu tivesse não teria essa de problema. Faria 15 clipes num dia só. Mas, não tem. Aproveito isso para fazer aos poucos. É isso. Não sei se era essa a pergunta, me perdi.

V: De boas, falei do single ser estratégia de uma galera. O disco como era no passado ficou meio pelo caminho, só que você defende o disco?

GA: Sim, defendo por mais de um motivo. Como eu nunca tive a chance de criar álbum antes, vejo que é muito fácil você ser um artista que fica lançando singles quando já tem 15 trabalhos no histórico. Faz muito mais sentido falar, 'ah, já tive dois CDs e, agora que o single tá bombando, eu não vou mais fazer CD, vou investir em singles'. Aí você tem repertório. Meu caso não, é urgente. Faço shows e as pessoas querem ouvir a música quando chegam em casa, ou antes de ir pro show, elas querem e não tenho. Lançar o álbum é construir uma primeira história. Uma primeira sequência de músicas e de ideias para depois ficar mais à vontade e para me permitir outras coisas.

V: Uma coisa que identifico no teu trabalho é essa inserção de Fortaleza. Você chegou aqui por volta de 2012, isso? Para fazer teatro na UFC. Aí, não rolou...

GA: Rolou demais. Rolou até onde eu queria. Quando não queria mais decidi fazer outras coisas. A universidade é muito importante, para muita gente. E para conseguir manter a seriedade do que é arte, às vezes, ela contribui com isso. Ainda mais no momento atual em que a arte é completamente desvalorizada. Participei dela até onde foi necessário. Infelizmente, essa burocracia do 'ah, ele fez o diploma, não fez' só prejudica. Tenho dois anos de universidade, de muito estudo, que são desconsiderados nos papéis e nas burocracias por não concluir o curso. Ao mesmo tempo, dane-se. Sou um ser humano. Eu vou morrer. O importante é que estou fazendo diretamente com as pessoas. Para mim é muito mais relevante estar aqui no Centro, trabalhar, ser reconhecido, trocar coisas com as pessoas que habitam aqui, a cidade em geral, do que reconhecimentos burocráticos, né. Mas, isso é no meu caso. Talvez seja um privilégio meu.

Legenda: Primeiro álbum terá 10 faixas. Cantor assina a a direção musical e Guilherme Mendonça (produtor, baterista da banda Astronauta Marinho) faz a produção musical
Foto: Camila Lima

V: Você rodou Teresina, Fortaleza, São Paulo, foi pra fora do País. Você sempre tem esse olhar estrangeiro sobre onde está? Vamos dizer, um olhar alienígena?

GA: Sim. Inclusive aqui em Fortaleza. É muito importante para mim tentar ter esse olhar alienígena, porque, caso contrário, me cansaria do lugar que eu moro. Ficaria cego. Então, você olhar para o lugar, mesmo que seja seu, como você fosse de fora, sempre reinventando a ideia que você tem do lugar, pelo menos no meu caso, que gosto de instabilidade, torna mais fácil a vida. Olhar como se tivesse sempre em busca de novas coisas ou que nunca vi. Toda cidade é muito grande, nós devemos ter a sensibilidade de perceber essa grandeza e o que podemos fazer por essa cidade.

V: A cidade surge quando você fala que está 'laricado', ao mostrar o território onde filmou o 'Tamanco de Fogo'. É punk. Meio Mad Max, do lixo, da rua. Em Fortaleza ninguém anda a pé, né?

GA: Totalmente. Eu ando de madrugada, a todo horário, de todo jeito. É engraçado. Eu não tenho religião, apesar das minhas crenças sempre mudarem muito. Todas as religiões falam muito de fé, mas no geral, as pessoas parecem não acreditar na própria religião. Não sei que fé é essa que faz as pessoas terem medo de viver na cidade delas, viver uma experiência, de sair de casa e tentar algo na rua. Óbvio que tem um monte de questões sociais aí que assustam, mas sinto que o materialismo é o condutor das decisões. Não saem de casa pois temem perder um celular. Não saem para evitar sujar a roupa. Óbvio que estou generalizando. Existe gente de todo tipo. Falei dessa coisa da fé, por que no fundo é isso. Acredito que vou conseguir ir e conseguir voltar. É o mínimo e máximo que posso realizar. Não há nada de diferente que eu possa fazer, a não ser acreditar muito que as coisas vão correr bem.

Legenda: "‘Vá se lascar’ sai um pouco do forró. Sai pouco não, saiu completamente. Quis estabelecer isso logo, para justamente não ficar preso e rodeado nessa grade de que sou um cantor de forró e acabou. Comecei afirmando isso, porém não quero perder a oportunidade e liberdade de fazer outras coisas"
Foto: Camila Lima

V: Dessa Fortaleza de 2012 pra cá, mudou muita coisa?

GA: Mudou muito. Eu também mudei. Aí eu não sei até que ponto se foi ela ou eu. De forma geral, consigo ver um processo de ocupação das ruas, dos movimentos artísticos de uma maneira muito maior. Não sei se as crises políticas ajudaram quem estava dormindo a acordar e decidir produzir. Ou se são as novas gerações que já estão mais ligadas e atentas. A internet ganhou um poder muito maior, faz com que se comunique mais rápido, tenha novas ideias, seja mais deslocado, queira assistir mais teatro, cinema, fazer festa. Descubra um lugar novo para ir. Percebo uma movimentação e expansão de ocupação da cidade. O que sinto de mais brutal é: descobriram que temos uma cidade que é grandiosa e que tem muito pra fazermos nela. Se fizermos. Porque nunca cai do céu.

V: O Carnaval está sendo um momento forte pra ti. Essa sociedade carola que vivemos se solta nesse período. Como tua produção se liga a isso?

GA: Em relação a trabalho, esse é o primeiro que estou de fato participando de uma programação ou sendo convocado. Até então, eu não tinha percebido muito esse potencial. Acho que nem teve tempo de as pessoas processarem, né. Passei muitos anos da minha vida irritado com o Carnaval. Passava o ano inteiro sendo chamado de 'doido', porque eu fazia isso e aquilo outro. Daí, chega o período e todos decidem se apropriar do que é esse 'ser doido'. Aí, tudo bem fazer nessa época. Para mim nunca fez sentido e sempre era muito chato pensar nisso. Falava já adolescente. 'Ave Maria! Vocês acham que precisam festejar só nessa época? Enquanto no resto do ano ao ver um homem 'vestido de mulher' vão chamar de 'viado', de 'travesti.' Entendeu? Se por um lado, o Carnaval é esse período interessante, no qual as pessoas se permitem mais, por outro, acho que só reafirma uma hipocrisia que no geral elas têm. Não se deve haver período para esse tipo de liberdade acontecer.

V: Você também falou da falta de grana, de incentivo. Como dribla isso aí?

GA: Ainda bem que finalmente estou sendo reconhecido e pago para fazer o meu trabalho. É uma sorte, um privilégio e uma dedicação de 100% da minha vida a isso.

Legenda: Getúlio Abelha tem no Centro da Cidade um refúgio. É por lá que anda de bicicleta de madrugada, grava clipes, faz shows e escoa as muitas inquietações pela arte
Foto: Camila Lima

V:Gostei da ideia de 'Tamanco de Fogo'...

GA: Na época achava que ia ser diferente. O 'Laricado' era um disfarce para criar o que realmente eu queria fazer em 'Tamanco de Fogo'. Até hoje eu amo 'Tamanco'... Mas, não sei. Minha cabeça é muito rápida. Parece que sempre estou olhando pra frente. Eu lancei aquilo e pra mim já passou. Agora, o público colhe isso. Outros artistas falam sobre. Eu sempre tento olhar um pouco além, deixar o pilão de bosta no chão. A galera faz o adubo que quiser com aquilo. Tem outras coisas que eu vou trabalhar e vou jogar no mundo, que são outros lados meus. Um álbum permite que tenha nuances nesse sentido. O Getúlio também é vulnerável, ele também sofre de amor, não? O que mais ele tem a falar? Até agora, tudo que lancei na carreira foi muito de apresentação. 'Vá se Lascar' tem muito a ver com a coisa de morrer. É tudo camuflado numa música dançante, numas palavras simples. Na real, tudo são dores muito profundas minhas.

V: Na letra de 'Vá se Lascar' tu fala 'É que eu sou maluca e eu sou doidão'. Como é você ouvir isso, essa coisa de ser 'doidão'?

GA: Sim, sendo que nem acho que eu sou, sabe? É mais um 'tá bom, gente. Ó, se é pra ser maluco, doidona, pois vamos...' Mas também tem uma coisa de inspirar. Quando eu recebo o retorno de que a música mexeu ou deu coragem para alguém, isso também me motiva. Deixa de ser algo somente sobre mim. É a melhor coisa quando vira sobre as outras pessoas. No fim das contas, eu sou só uma ferramenta que serve para os outros usarem. É um carma. É gostoso ser artista, ser reconhecido e tudo. É também doloroso.

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