“Flicts”, de Ziraldo, chega aos 50 anos revigorado por narrativa atemporal sobre autoaceitação

Clássico do cartunista mineiro ganha edição comemorativa pela Melhoramentos, com comentários de outros grandes nomes da literatura

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@verdesmares.com.br
Legenda: “Flicts” é o primeiro livro infantil de Ziraldo e segue encantando gerações
Foto: Divulgação

Ver de verdade é exercício demorado. Percorre travessia talvez tão longa quanto achar-se. Atos em constante processo, fundem-se de maneira orgânica: para encontrar o genuíno eu, é preciso perceber com os olhos o interior. Palmilhar escombros, cruzar origens, perceber vontades. E nesse mundaréu de verbos, deixar-se aberto à dor e solidão que muitas vezes essas andanças provocam. Não é fácil captar-se.

Ziraldo compreendeu bem essa perspectiva e fez mais: abraçou-a por completo em doses máximas de criatividade. Concebeu um dos maiores clássicos da literatura infantojuvenil brasileira quando do desafio proposto pelo editor Fernando de Castro Ferro, da Expressão e Cultura.

À época, década de 1960, o cartunista mineiro pretendia editar uma coletânea das tiras semanais que publicava em dois veículos - o Jornal do Brasil e a revista O Cruzeiro. Para realizar o feito, contudo, teria que escrever um livro infantil em curto espaço de tempo, a fim de otimizar o esquema de produção dos conteúdos.

Nascia "Flicts", que, neste ano, celebra meio século em plena forma, revigorado pelo ânimo de gerações ao entrarem em contato com o livro. Texto-imagem sobre muita coisa, é universo de possibilidades abertas, num inventivo jorro cromático em direção ao profundo de nós mesmos, seja entre os de pouca ou maior idade. Afinal, conhecer a si, ao passo que atemporal, também desconhece ciclos. Ou melhor: imerge em todos eles.

Legenda: Trecho do livro, que aprofunda olhares sobre temas como autoaceitação e procura por lugar no mundo

Inventividade

Flicts é apresentada à audiência como uma cor "muito rara e muito triste". Diante das outras, ela não parece possuir algo que a defina. Não tem a força do vermelho, a imensa luz do amarelo, nem a paz que tem o azul, conforme Ziraldo destaca. É "frágil, feia e aflita".

Por isso mesmo, tenta de todas as formas se integrar a um mundo onde a totalidade de cores parece saber muito sobre si - podia ser uma narrativa contada por nós mesmos, não é verdade? Nesse contexto, a jornada, ao passo que doída, vai revelar-lhe lições preciosas sobre o próprio eu.

Além de imergir em temáticas caras aos tempos de sempre, o cartunista destaca-se pela inventividade com a qual passa o recado. Se a obra ocupa espaço privilegiado no cenário artístico-cultural brasileiro, muito se deve ao engenhoso trabalho de percepção e arranjo de formas e tons que Ziraldo combina nas páginas, de maneira a expandir a consciência dos leitores sobre o estado de espírito da cor protagonista.

Não à toa, Flicts caminha em cenários construídos a partir do branco total, da flutuação no azul, no atravessar de uma esfera ou entre recortes de outras cores. É tonalidade afoita pela busca. Celebrar os cinquenta anos desse misto de percepções que a obra evoca ficou por conta da Editora Melhoramentos, unida à forte time.

A designer e sobrinha do autor, Adriana Lins, e o designer e escritor Guto Lins, assumiram o leme da proposta de reeditar o material, fac-similar à primeira edição, primando pela fidelidade ao projeto inicialmente idealizado pelo cartunista, mantendo diagramação e tipografia originais.

Também retorna às 80 páginas - outrora havia ficado com 40 devido às demandas mercadológicas - e, conforme a editora, deve sair assim em todas as próximas edições.

Nessa nova-antiga roupagem, vem ainda com um bônus: comentários de amigos de Ziraldo, relevantes personalidades das letras nacionais, tais como Rachel de Queiroz e Millôr Fernandes.

A crônica escrita por Carlos Drummond de Andrade no dia do lançamento do livro também está disponível na íntegra, logo nas primeiras páginas, resgatando as considerações feitas pelo poeta sobre a obra-prima do amigo.

"Que é Flicts? Não digo, não quero dizer. Cada um que trave contato pessoal com Flicts, e sinta o que eu sinto ao conhecê-la: um deslumbramento, um pasmo radiante, a felicidade de renascer diante do espetáculo das coisas em estado puro", confessa.

Legenda: Autógrafo de Neil Armstrong na obra, lançada no mesmo ano em que o astronauta pisou na Lua

Processo

Ziraldo finalizou o livro em apenas dois dias, utilizando pedaços de papéis coloridos no protótipo, o que justifica a natureza minimalista e experimental da obra. Pela fácil apreensão do conteúdo - incapaz de negar sua complexidade, mas complementando-a - o material, reeditado várias vezes, já foi adotado como conteúdo pedagógico por escolas e ganhou os palcos a partir de adaptação para o teatro.

Igualmente, foi traduzido para idiomas como inglês e japonês, e, até hoje, não caiu no índice de vendagens da Melhoramentos. Pelo contrário: ano após ano, os exemplares ocupam as mãos do público, seja em eventos de maior porte ou na simples presença nas prateleiras das livrarias.

Para além de tudo o que mencionamos quanto aos aspectos técnicos e imaginativos da narrativa, o que justifica tamanha adesão por parte de leitores e leitoras? É que Flicts é bem mais que grafismos inteligentes esparramados por páginas em brochura. Com o enredo, Ziraldo entrega uma apoteose à sensibilidade sem desmerecer as questões comportamentais importantes para a compreensão própria e do mundo ao redor.

É sobre combater a discriminação e exaltar a diversidade, bem como considerar que nascemos únicos e, portanto, detentores de nossas jornadas. Perceber essas nuances é abrir espaço para que a liberdade de ser quem é convoque novos precedentes de aceitação e acolhimento ao novo e diferente.

Ao final da leitura desse cativante e verdadeiro recorte da vida, você verá que o universo, colorido ao extremo, tem espaço para todas as cores. Neil Armstrong é prova disso. Ao pisar no satélite maior que tudo vê, declarou: "A Lua é Flicts".

Flicts
Ziraldo
Melhoramentos
2019, 80 páginas
R$44, 48

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