Filme de Orson Welles chega ao mercado com quase meio século de atraso

"O Outro Lado do Vento" foi rodado ao longo dos anos 1970 e jamais concluído. Último trabalho de Orson Welles (1915-85) tenta manter intacta a visão do cineasta sobre a Hollywood daquele momento

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@diariodonordeste.com.br

A história aqui relatada começou quando duas notórias criaturas da cultura norte-americana praticamente saíram no braço. Estamos em 1937. De um lado do ringue encontrava-se o já consagrado Ernest Hemingway (1899-1961) e na outra ponta estava o jovem Orson Welles (1915-1985). Antes de despontar com a dramatização radiofônica de "Guerra dos Mundos" e criar o imortal "Cidadão Kane" (1941), o prodígio tinha sido contratado para narrar o documentário "The Spanish Earth", sobre a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

Responsável pelo roteiro, Hemingway ficou indignado quando percebeu as alterações do "enfant terriblee" no texto. O grande estilista da prosa gritou que Welles não era "macho suficiente" para atuar na locução de um filme sobre a guerra. "Senhor Hemingway, quão forte você é e quão grande você é?", ouviu prontamente o veterano.

Após a confusão, mais calmos e com os egos intactos, a dupla terminou matando uma garrafa de uísque. O episódio é narrado em "Orson Welles's Last Movie: The Making of The Other Side of the Wind" (2015), de Josh Karp. Segundo o autor, serviu três décadas depois como inspiração para a obra "O Outro Lado do Vento". Considerado o último filme do cineasta, a produção finalmente é lançada após 48 anos de ostracismo. A versão finalizada estreou na última edição do Festival de Veneza.

Para alegria dos fãs, o filme considerado praticamente perdido está disponível no serviço de streaming Netflix desde a última segunda-feira (5).

Desdobramentos

Inacabado por motivos financeiros e inúmeras complicações na justiça, "O Outro Lado do Vento" era para ter sido a última grande obra de Welles. Após a morte do amigo Hemingway, a intenção do realizador era contar a história de um protagonista errático e de difícil trato com o público. Um sujeito turrão à altura do escritor. Todavia, como as filmagens começaram em 1970, o conceito narrativo original fora ampliado. A nova premissa dava conta de um produto capaz de satirizar a indústria cinematográfica daquele momento.

Legenda: Orson Welles, Peter Bogdanovich e John Huston analisam o roteiro de uma obra considerada maldita no cinema

Após seis anos de trabalho, com as edições já adentrando os anos 1980, o projeto foi engavetado após o falecimento do cineasta. Restaram mais de 100 horas de gravação e algumas sequências editadas. Sem nenhum exagero, os desdobramentos em torno do resgate deste material já reúnem fatos suficientes para um outro filme.

Esperto quanto ao assunto, o serviço de streaming também disponibilizou os documentários "A Final Cut for Orson: 40 Years in the Makin", de Ryan Suffern; e "Serei Amado Quando Morrer", dirigido pelo vencedor do Oscar Morgan Neville. O último encontra-se na grade brasileira e mostra-se como ótima pedida para introduzir o histórico caótico tanto do criador, como da criatura denominada "O Outro Lado do Vento".

Via crúcis

De volta a Hollywood após autoexílio de dez anos na Europa, Welles começou a construir o ambicioso filme. Com baixo orçamento, locações reduzidas, elenco e equipe técnica composta por ex-colaboradores e admiradores confessos, as filmagens iniciaram em 23 de agosto de 1970. Com o dinheiro minguando, a alternativa de Welles foi buscar financiamento a qualquer custo. Fez comerciais, programas de TV e até participações discutíveis em outros filmes. O iraniano Mehdi Bushehri (cunhado do falecido xá do Irã) chegou a investir dinheiro na empreitada. Após uma discussão com o cineasta, o investidor bateu pé e só permitiu a distribuição caso fosse reembolsado integralmente.

A Revolução Iraniana (1979) complicou ainda mais a situação. Segundo o autor Josh Karp, o governo iraniano tentou assumir o controle dos negativos do filme. O acervo era copropriedade da empresa de Bushehri e de Oja Kodar, colaboradora de Welles e companheira na última parte de sua vida. Os 1.083 rolos de filmes foram alvo de disputas judiciais entre os detentores dos direitos autorais, incluindo a filha do realizador, Beatrice Welles. "O Outro Lado do Vento" ficou trancado por anos em um armazém no subúrbio de Paris. Inúmeras tentativas de completar o filme aconteceram desde então, nenhuma delas obteve sucesso.

O resgate definitivo acontece quando Filip Jan Rymsza, da Royal Road Entertainment, adquire os direitos de Busheri. O renomado produtor Frank Marshall (que trabalhou no filme quando jovem) também se fez presente. Completando a militância sobre a memória de Welles consta Peter Bogdanovich, também personagem central nas filmagens da obra. "Quero que você prometa que finalizará o filme, se algo acontecer comigo", disse o mestre ao então novato.

É a voz já envelhecida de Bogdanovich quem apresenta os primeiros minutos de "O Outro Lado do Vento". A foto de um carro destruído explica a morte do lendário (e fictício) cineasta Jake Hannaford, vivido pela lenda John Huston (1906-1987). Uma festa celebra os 70 anos do personagem. Amigos, oportunistas e pessoas da indústria assistem trechos do inacabado e "último filme" de Hannaford, "O Outro Lado do Vento". É a tentativa do diretor de desenhar a efervescente contracultura dos anos 1970. Entre os participantes está Brooks Otterlake (Bogdanovich), ex-pupilo cinematográfico e recém saído de um sucesso comercial de bilheteria.

Mergulho

Hannaford precisa de dinheiro para finalizar o filme e aguarda que algum convidado tome a iniciativa. Há também outra complicação. O ator principal do filme desapareceu e boatos nos bastidores apontam que o machista Hannaford estaria apaixonado por ele. O bajulado diretor, reverenciado como o "Ernest Hemingway do cinema", lida com toda aquela situação na companhia da garrafa. Vestido como se participasse de um safari, ataca desafetos, tenta se mostrar garanhão seduzindo uma adolescente e encerra a comemoração mandando bala para todo lado.

A metalinguagem de Welles é crua, perversa e intensa. Orgias, substâncias ilícitas, beatniks e figuras nefastas do submundo de Hollywood são diluídos na montagem nervosa, embalada por uma sonoridade jazz. O clima "cool" representa um universo cinematográfico triste e impiedoso. O filme dentro do filme segue como testamento da amarga visão do criador de "Cidadão Kane" sobre o lado de trás das câmeras. Tal qual Hannaford, buscou compreender um mundo e um cinema da qual estava distante. Pouco palatável para o público acostumado a outros produtos com o selo Netflix, "O Outro Lado do Vento" representa o último sopro criativo desse gigante da sétima arte. É um registro seco, desconexo e por vezes boçal. Se apresenta grandioso ao desnudar o universo das estrelas de ontem e hoje.

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Projetos inacabados do diretor

"Heart of Darkness" (1939)

"It's All True" (1941-42)

"Lady Killer" (1941)

"Cyrano de Bergerac" (1948)

"Moby Dick" (1955)

"Don Quixote (1955-85)"

"The Deep" (1967-73)

"The Dreamers" (1978-85)

"King Lear" (1982-85)

 

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