Estrelado por Marco Nanini, "Greta" estreia nacionalmente no Cine Ceará

Após elogiada participação no Festival de Berlim, filme do cearense Armando Praça integra a Mostra Competitiva de longas do festival

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@diariodonordeste.com.br
Legenda: Pedro (Marco Nanini) atravessa o drama da exclusão
Foto: Aline Belfort

A aura em torno de Greta Garbo (1905-1990) demarca a existência de uma estrela pouco convencional na dourada Hollywood dos anos 1930. Rosto de sucessos como "Grande Hotel" (1932), "Anna Karenina" (1935), "Camille" (1936) e "Ninotchka" (1939), a sueca de personalidade discreta e evasiva ganhou a alcunha de "quem nunca sorri". Aos 36 anos e dona de um dos maiores salários da época, optou pela aposentadoria. Escolheu o anonimato e a reclusão. Chegou a ganhar um Oscar honorário em 1954. A "mulher divina" nem se preocupou em ir receber a estatueta.

Glamour e mistério edificaram a imagem de uma diva errática (aos padrões da exposição midiática), porém inspiradora para inúmeras gerações. Estamos em 2019 e ecos da trajetória da diva são perceptíveis e ainda decifráveis. O filme "Greta", do cearense Armando Praça, estreia nacionalmente na mostra competitiva de longas do Cine Ceará - Festival Ibero-americano de Cinema. Chega a Fortaleza, cenário das gravações, meses depois de brilhar mundialmente na Mostra Panorama do Festival de Berlim 2019. Marco Nanini é um dos protagonistas da aguardada produção.

"Greta" é livremente inspirada na peça "Greta Garbo, Quem Diria, Acabou no Irajá", do dramaturgo Fernando Melo, lançada no início dos anos 1970. Partindo do material original, Praça permitiu-se explorar a verve dramática do texto. Interessava devassar o cotidiano de criaturas anônimas e eclipsadas. Num sentido inverso ao da atriz sueca, o silêncio destes personagens remete à agonia da exclusão social. As semelhanças iluminam o apego à arte e a busca por redenção.

Pedro (Nanini), um enfermeiro homossexual de 70 anos e fervoroso fã de Greta Garbo precisa liberar uma vaga no hospital onde trabalha para salvar Daniela (Denise Weinberg), sua melhor amiga. Para desocupar o espaço a opção é ajudar Jean (Démick Lopes), jovem que acaba de ser hospitalizado e algemado por ter cometido um crime.

Legenda: O enfermeiro fã de Greta Garbo e a amiga Daniela (Denise Weinberg)
Foto: Aline Belfort

Pedro organiza a fuga e esconde o paciente em sua própria casa até que ele se recupere. Nesse período, a dupla se envolve afetiva e sexualmente. A relação evolui e aplaca as dores do protagonista pela situação de Daniela. Consequentemente, tais eventos eclodem mudanças surpreendentes e pessoais no enfermeiro. Atinge em cheio uma das rotinas antes marcada pela solidão. A relação com a finitude do corpo e a velhice emergem.

Força narrativa

Estas são as poucas pistas que o público possui da obra. Horas antes da primeira sessão em solo brasileiro, Praça divide algumas expectativas da adaptação dos palcos para as telonas. "O mais importante para falar desse personagem é que ele, como qualquer pessoa que exista, seja ela do gênero que for, da idade que tenha, o que ele quer basicamente é amar e ser amado. É universal nesse sentido. Claro que quando você faz um personagem que deseja amar e ser amado, inserido num contexto, ou seja, ele é mais velho, com menos perspectivas, é homossexual, tem uma série de questões que dificultam esse desejo, isso dá complexidade à vida dele", explica o diretor sobre a proximidade e empatia da plateia por Pedro.

Para dar a profundidade necessária ao personagem, Praça explica que era preciso um ator que tivesse transitado entre TV, cinema e teatro. Um profissional que nunca tivesse sido visto fazendo um personagem com tais características. A escolha por Nanini foi natural. "Sempre almejei ter um grande autor fazendo esse personagem", revela.

Encontros

Nanini, por sua vez, destaca toda a perspectiva proposta pelo cearense na criação deste universo. "O Armando me procurou, foi na minha casa, tivemos uma empatia mútua, muito interessante. É um cineasta aplicado no que quer fazer e gosta. Ele escolheu justamente o lado do drama que o humor contém. Ou seja, todas a rubricas, tudo o que significava a vida desses dois personagens, em termos, digo de Greta, ele aproveitou", reflete o veterano ator.

A situação de preconceito e abandono vivida pelas figuras da trama é outro expediente caro ao desenvolvimento cênico do ator pernambucano. "Faço esse enfermeiro septuagenário que trabalha num hospital público e reflete muito a solidão desse homem e das pessoas mais velhas. Não só dele, mas de todo desse elenco de personagens que o filme aborda. São marginalizadas, que sofrem muito para viver, resolver suas coisas", aponta.

Démick Lopes, que vive Jean, recupera a característica dinâmica do texto. Ao invés de priorizar uma forma cômica, transmite as peculiaridades da vida real. "Foca na vida de uma pessoa de 70 anos e sua própria inclusão. É um roteiro muito consolidado, farto dessa verticalidade. Cada um tem aprofundamento na sua verticalidade dramática", sugere o cearense.

Legenda: Démick Lopes (Jean) situa a precisão do roteiro em cuidar do jogo cênico
Foto: Aline Belfort

O ator situa a urgência política de "Greta". O ator espera que o debate do público priorize a situação social mostrada na tela. É preciso acordar para os que vivem marginalizados social e economicamente. "O Armando aborda com uma visão respeitosa por esses personagens, com muito apreço por eles todos. Então, isso criou um interesse genuíno nosso de ir para o set filmar. Foi muito legal, gostoso o tempo que passei com todos filmando em Fortaleza. Ainda mais que eu tinha essa beleza da cidade nos meus olhos assim que eu acordava", conclui Nanini.

Um novo olhar na atualidade

Armando Praça destaca o quão relevante será a estreia de "Greta" em chão cearense. Tal expectativa permeia fatores pessoais e inseparáveis para o realizador. O primeiro longa-metragem da carreira estreia no País no Cine Ceará, festival do qual o diretor participa há 20 anos como espectador e teve seus curtas metragens exibidos. Outra sensação especial advém do fato de o filme ter sido todo filmado em Fortaleza.

Nessa quinta-feira, Praça entrega ao público uma obra que repensa a dramaturgia e a maneira de se expor e falar de brasileiros marginalizados. O diretor recorda que seu interesse particular pelo teatro ajudou na solução das escolhas narrativas. O contato e imersão no texto original de "Greta Garbo, quem diria, Acabou no Irajá" foi marcado pelo estranhamento.

Legenda: "É o cinema brasileiro que está em discussão, é o cinema brasileiro que precisa ser prestigiado e precisa ser visto e entendido. Nós fazemos para o público brasileiro, então precisamos do público brasileiro. Vai ser muito emocionante estrear no Ceará. Imagino que para o Armando, nem se fala", divide o ator
Foto: Aline Belfort

"A primeira vez que eu vi montado, senti um incômodo muito grande pelo fato do texto ser originalmente uma comédia e as pessoas riam do personagem principal. Naturalmente riam daquilo porque a montagem leva a isso, o texto leva a isso. No contexto em que eu vi, já nos anos 2000, rir daquele personagem, para mim, já não fazia tanto sentido", divide.

Adaptação

Naqueles anos 1970, marcados pelo aprofundamento da Ditadura Militar (1964 - 1985), talvez o prisma da comédia fosse a alternativa mais viável para contar o cotidiano destas pessoas. Quase cinco décadas depois, o Brasil testemunha outra onda de debates e denúncias de regressão no tocante ao trato dos profissionais da cultura e uma perseguição declarada a conquistas sociais de minorias.

Um projeto cuidadoso, que demandou mais de 10 anos de reflexão e trabalho por parte do diretor, "Greta" dialoga com o tempo atual ao se permitir mudanças pontuais. A mais evidente ancora-se no tom buscado pela produção. Mesmo deixando o terreno da comédia, a opção pelo drama se permite proteger as características do texto.

Porém, era necessário olhar de outra forma. Esgarçar uma atualidade para o modo de olhar as quedas e lutas destes personagens. Não fazia mais sentido rir das desventuras de Pedro. Talvez rir com ele, mas não dele. "Embora vivamos um tempo semelhante com os anos 1970, acho que tivemos grandes avanços e, nesse sentido, ainda podemos olhar para esse tipo de personagem com mais empatia, sem necessariamente ter que rir deles", discute Praça.

Temas discutidos ultimamente carecem de revisão. "A maneira como falamos de machismo, feminismo, a forma como lidamos com o racismo e com a homofobia. Somos de um período em que as atualizações na maneira como conduzimos esses temas nas artes e no entretenimento são supernecessárias e bem-vindas. Não planejei muito nada disso, mas no fim das contas acabou sendo uma certa coincidência que tudo isso esteja acontecendo mais ou menos na mesma época", conclui o cearense.

Legenda: Para Armando Praça, rir com o personagem (mas não dele) é uma das alternativas de explorar as desventuras de indivíduos marcados pela exclusão social
Foto: Alan Oliveira

Filmografia de Armando Praça

"Parque de Diversões" (Fic. 10`- 2002)
"O Amor do Palhaço" (Fic. 15`- 2006)
"A Mulher Biônica" (Fic. 20`- 2008)
"A Invenção do Sertão" (Doc. 26`- 2011)
"Origem: Destino" (Doc. 52`- 2013)
"Flores" (Fic. 10`- 2016)
"Silêncio" (Fic. 15`- 2016)

 

 

 

 

 

 

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