Espetáculo reflete sobre as condições em que travestis viviam na época da Ditadura Militar

Para montar o enredo do espetáculo, foi necessário pesquisar registros, documentos e artigos de jornais sobre a época para obter suporte

Escrito por Lívia Carvalho , livia.carvalho@svm.com.br
Legenda: A peça reconta a história do Regime Militar sob a perspectiva LGBT

Onde estavam as travestis durante a ditadura militar? Talvez você nunca tenha se feito essa pergunta. Entre o período de 1964 a 1985, incontáveis pessoas foram presas e até mesmo mortas por motivos não esclarecidos. O questionamento com que começo este texto foi o pontapé para que os atores Helena Vieira e Tavares Neto se reunissem para pesquisar sobre essas pessoas e montar um espetáculo teatral.

Apesar de sempre estarem presentes no imaginário brasileiro, seja na televisão, nas ruas e nas casas de performances, o espaço em que as travestis se encontram ainda é de invisibilidade. Se atualmente, época em que o debate LGBT está em voga, o contexto é ainda de preconceito, a pesquisa revelou um cenário de ainda mais barreiras para pessoas que não se encaixavam no padrão social. "Toda vida que a gente pensa nesse período, a gente tem uma visão muito masculina, heterossexual e branca de todo esse processo. Quem são os grandes heróis da Ditadura? A gente lembra logo de Vladimir Herzog, Frei Tito e Carlos Marighela. E como a gente repensa essa história a partir desses outros corpos que já estavam lá, que viveram esse momento, que são as pessoas LGBT?", explica Tavares.

Esse movimento de opressão ainda foi visto no período de abertura democrática, aponta a pesquisa. Em 1987, uma operação, denominada "Tarântula", da Polícia Civil de São Paulo, perseguiu cerca de 300 mulheres trans e travestis. A justificativa era a de combater a Aids. Somente no primeiro dia 56 pessoas foram presas.

No palco

A concretização do estudo foi incorporada e transformada artisticamente como instalação cênica, desenvolvido também por eles e que mescla as linguagens do cinema, do teatro, da música. O processo de criação artística vem sendo desenvolvido dentro do Laboratório da Escola Porto Iracema das Artes desde 2016 com o "Outro grupo de Teatro".

Em dezembro de 2019, o espetáculo foi apresentado na 7ª Mostra de Artes do Porto Iracema (MOPI 7). A ideia é que a estreia oficial seja feita neste ano. A não-ficção contou com a tutoria do paulista Luiz Fernando Marques, também conhecido como Lubi, que integra há 19 anos o Grupo XIX de Teatro. Além de Helena e Tavares, o elenco é composto também por Nicole Lessa e Noá Bonoba.

A montagem traz a presidente do Brasil, à época, sendo uma travesti, e reconta a história desse regime a partir do olhar de LGBTs. O texto gira em torno do golpe sofrido pela chefe de Estado. "A gente apresenta essa fabulação, o tipo de coisa que se tivesse realmente acontecido, não estaria nos livros, a gente trabalha em cima dessa construção, desse trabalho mental", diz. "Nós precisamos também contar a história de outros sujeitos. Os xamãs do teatro eram os únicos capazes de invocar os mortos para contar suas próprias histórias", conta Helena sobre a motivação de transformar esse objeto de estudo em comunicação para os palcos.

Processos

A busca dos três começou por meio de um famoso texto homônimo de autoria de Helena, publicado em 2015 a partir das reflexões da escritora sobre o relatório da Comissão Nacional da Verdade, criada para apurar os casos de violações aos Direitos Humanos entre 1946 e 1988. "O documento falava das homossexualidades e, por isso, não parecia que existiam travestis, é como se fossem todos homossexuais", explana.

O desdobramento dessa pesquisa integra o livro "A História do Movimento LGBT no Brasil", organizado por James N. Green, Renan Quinalha, Marisa Fernandes e Marcio Caetano e publicado em 2018. O capítulo da ativista foi escrito em parceria com Yuri Fraccaroli, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP).

Livros, buscas por personagens, matérias de jornais e o que mais pudesse contribuir foram as peças do quebra-cabeça que nortearam o projeto. Justamente por ser um tema 'apagado' da história, as dificuldades de encontrar suportes foram várias. Foi aí que veio a ideia de recriar esse enredo por meio do teatro. "Só a arte é capaz de dar conta dessa história, desses anos de apagamento", justifica Tavares.

"Nós descobrimos que já havia a identificação como travesti naquele período, constatamos também uma série de violências sofridas. Além, da imensa presença de travestis nas páginas policiais, sempre retratadas", revela Helena. As dificuldades do processo de pesquisa foi um dos motores para o grupo criar o próprio texto da peça e remontar essas memórias que foram apagadas. "É impossível seguir as pegadas da história, sem reinventá-las. É uma mistura desses documentos com nossas criações", afirma Tavares Neto.

A travesti Thina Rodrigues, no entanto, não esquece. A cearense vivenciou os duros dias e foi presa aos 20 anos. Hoje, aos 57, traz consigo a marca de ter criado a Associação de Travestis do Ceará (Atrac) ao lado da ativista Janaína Dutra, há duas décadas. Foram relatos como os de Thina que permitiram que Helena e Tavares tivessem suporte para montar o espetáculo.

O grupo partiu de três núcleos em que essas pessoas estariam presentes: nas ruas, se prostituindo; nos cabarés artísticos, fazendo performances; e nos manicômios, já que ter uma identidade de gênero diferente da biológica era considerado como uma patologia.

Além dos fatos brasileiros, a pesquisa usou também como referência o acervo do Museu Travesti do Peru, projeto criado pelo filósofo e drag queen peruano Giuseppe Campuzano, que reúne elementos da história das pessoas transgêneros, travestis, transexuais, intersexuais e andróginas do local desde a época colonial até os dias atuais.

Enquanto mulher trans, para Helena, a iniciativa mostra a capacidade de expandir as formas de contar essa história: "É propor por meio da arte a criação de outro território existencial e significante para a população de travestis e transexuais, que é a ideia de que todos temos o direito a ter uma história. Nós temos uma história pra reescrever". O espetáculo deve ganhar os palcos ainda neste primeiro semestre de 2020.

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