Davi Wallace e as mãos que movem mudanças

De quando o enlace com o artesanato e instrumentos musicais, feito o pife, alimentaram a vocação para trilhar outras estradas

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@verdesmares.com.br
Legenda: O pife é um dos instrumentos que Davi Wallace utiliza como forma de perpetuar a mudança pela arte que lhe ocorreu, quando vivia em um espaço na Avenida Tristão Gonçalves
Foto: Foto: Fabiane de Paula

É fácil trocar vários dedos de prosa com Davi Wallace. Tem personalidade de quem passa o dia costurando assuntos, como que pondo à mostra o baú carregado de memórias. Algumas são boas, generosas com o homem de 42 anos; outras, nem tanto. É quando fixa o pensamento nestas que a voz, grave e arrastada, por vezes embarga, sendo reflexo de um sentir apurado, de desabrochar silêncios.

Ouça o pife tocado por Davi:

"Minha chegada à rua foi devido à quebra de um vínculo familiar", explica, em segundos de conversa. "Após a morte do meu pai, eu comecei uma drogadição e isso acabou revoltando a minha mãe e os meus irmãos. Eu tive que ir embora para o Pará. Lá, parei de usar drogas. Quando voltei, minha mãe tava com câncer, e tudo que eu tinha juntado lá foi pra gente proporcionar uma operação pra ela, particular e tal. Nisso acabou que ela ainda teve uma sobrevida de mais de um ano".

Bastou Haidee Sales Vieira falecer e Davi lembra que uma das irmãs tomou a casa onde ele e a parente moravam, no bairro Henrique Jorge. "Dizia que era dela. Sabe o que aconteceu? Sem casa, saí pra rua. Tava sem trabalho, sem grana? Foi o jeito que encontrei". 

Não demorou para, já instalado no olhar confuso da urbe desnuda e ainda misteriosa para ele, seguir o rastro de uma fila que dava acesso ao Centro de Atendimento à População em Situação de Rua (CAPR), no Centro da cidade.

Foi onde, conforme conta, encontrou com a sorte, logo no primeiro dia. "Teve uma pessoa que já estava em situação de rua que me falou de um almoço de graça lá na Irmã Inês, uma senhora que mora depois do Shopping Benfica. Há muitos anos ela trabalha com a população de rua. É um anjo".

Após a refeição, a dupla de novos amigos se dirigiu ao ponto que fica em frente à loja Acal, na Avenida Tristão Gonçalves. Era lá onde o mais antigo deles costumava ficar, unido a outras pessoas em semelhante condição. Davi se instalou também, permanecendo durante pouco mais de quatro anos.

Legenda: A música e o artesanato acenderam o espírito criativo de Davi Wallace para trilhar novos passos
Foto: Foto: Fabiane de Paula

Aprendizados

Na fala apressada, escapa, de modo proeminente, o gosto por ter vivenciado, ainda que em condição degradante, um período específico de peregrinação por terrenos seguros. Todos desembocando na arte. Feito Wagner Gonçalves, Davi igualmente se apegou ao trabalho de arte-educadores do Centro de Referência que costumava frequentar. O que, a priori, era muleta somente para garantir o almoço diário, foi se tornando parte vital do caminhar.

"A mudança pela arte foi da necessidade de fazer alguma coisa enquanto estava na rua. Fui me apaixonando com esse contato, logo no começo. Conheci o pife durante uma oficina de fabricação de instrumentos, onde a gente criou até um grupo de batuque. Tocamos também em conferências voltadas sobre o debate da situação da população de rua, onde eu passei durante algum tempo sendo o representante da delegação cearense", sublinha.

"O pife é legal porque você também acabava vendendo. Arranjava uma vara de PVC e fazia quatro, cinco, dez pifes. Pendurava na cordinha, eu e um parceiro, e saíamos pra rua. Todos os dois tocavam e vendiam, cada um a R$ 10. Daí é que tirava minha renda". Além do instrumento musical, a leitura e o artesanato também eram parte importante da rotina.

Animais modelados pela técnica do origami; trabalhos com garrafas pet, madeira, tinta e areia; mandalas a partir de palitos de jornal: tudo era aproveitado para gerar vida. Apesar de não prestar mais ofício nesse ramo, dez anos após sair das ruas - é metalúrgico em uma oficina no Benfica, onde atualmente reside, bem próximo à Acal, lugar que sempre volta a fim de rever os amigos - deixa entrever impressão segura: foi pela arte o alvorecer para uma nova existência.

Legenda: Apesar da nova realidade, a conexão de Davi Wallace com os colegas que vivem em frente à loja Acal, no centro da cidade, permanece
Foto: Foto: Fabiane de Paula

Esta que se revela ser desafio diário, de batalha para conquistar o espaço que tanto Davi almeja. Algum ambiente acessível na cidade para preservar sua dignidade de homem novo. "Pra rua eu não volto mais", assegura.

"Acontece que eu sempre toco. Além do pife, tenho um violão. Geralmente, quando tá tendo uma festinha no bar perto do trabalho, vou com meu pifezinho. Carrego sempre ele comigo. O cara que toca pife nunca vai deixar de ter ele guardado".

Como que exemplificando o que acabou de dizer, faz do instrumento extensão da própria mão e interpreta uma canção de Bob Marley. Quase sempre, garante, é porta aberta para iniciar uma prosa de novo.

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