Crônica: Morte e vida severina, um auto de Natal

Ana Miranda fala sobre a caminhada do retirante Severino, personagem do poema de João Cabral

Escrito por Ana Miranda , anamiranda@diariodonordeste.Com.Br
Legenda: O autor João Cabral faria 100 anos em 2020

"Essa cova em que estás, com palmos medida, é a conta menor que tiraste em vida. É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe neste latifúndio"... O poema de João Cabral, "Morte e vida severina", foi escrito como um auto de Natal do folclore pernambucano e de tradição ibérica, a pedido da diretora do Teatro Tablado, no Rio, anos 1950. Não foi encenada.

Dez anos depois, tornou-se um dos poemas mais conhecidos da literatura brasileira, após a montagem teatral musicada por Chico Buarque. É a caminhada do retirante Severino, igual a tantos severinos, que durante uma seca está indo para Recife e encontra mortes, gente cantando excelências, enterros. Fala com uma mulher à janela, mas é uma ajudadora da morte, talvez a própria morte.

Desolado, Severino segue sua caminhada, seu guia é o Rio Capiberibe, que está seco, um barro crestado. Severino chega a Recife, quando encontra no cais o seu José, mestre carpinteiro, e lhe diz que sua saída é saltar, numa noite, fora da ponte e da vida. Nesse momento, uma mulher anuncia o nascimento do filho de José.

Chegam à casa do carpina seus amigos, vizinhos e duas ciganas, assim como pessoas trazendo presentes para o recém-nascido, como os Reis Magos. As ciganas fazem leitura da sina da criança. Falam os vizinhos. Mestre José diz a Severino que a resposta para sua dúvida, se deve saltar da ponte e sair da vida, ele não sabe dizer, mas a própria vida respondeu com o anúncio de uma vida que nasce. Uma mensagem de esperança, para tamanha desesperança de Severino.

Belos versos cabralinos em medida velha, a redondilha maior, verso sonoro, fácil de obter. Nesses versos ele materializa em nossa realidade o nascimento de Jesus. Um grande poema social. João Cabral não escrevia sobre si mesmo, não fazia confissões, evitava qualquer mostra de sentimento. A miséria, o sofrimento humano, ele tratava com ironia, até mesmo com uma ponta de humor negro, movia o mundo mais pelo sarcasmo do que pela piedade.

Seus poemas são racionais, rigorosamente simétricos, seja na forma, seja nas imagens; os ritmos são incrivelmente musicais, embora ele mesmo acreditasse que a música é apenas ruído; e matemáticos. Mesmo não falando de si, há em seus poemas a presença de sua mais funda caliça. Ele escreveu que "só duas coisas conseguiram (des)feri-lo até a poesia: o Pernambuco de onde veio e o aonde foi, a Andaluzia".

E lá está Pernambuco, a infância de Cabral, um homem que cresceu bebendo água de quartinha, na paz redonda dos fogões a lenha, na calma que vem dos alpendres, dos matos horizontais, dos rios lânguidos. Entre gente de fala pouca, lenta, pausada, cortada a faca. Em sua poesia há a fala dos rios, imitada das águas, a fala dos caranguejos, dos cemitérios, das redes na varanda, das cabras, a fala do sol. Cabral deixou-nos uma poesia da mais alta estirpe, uma poesia humana, muscular e política.

Com perfeita exatidão das palavras e sua simetria, ele comprova que a poesia, como diziam os antigos, é uma ciência exata como a geometria. Cabral faria 100 anos, neste ano de 2020, e lhe devemos todas as homenagens, por sua poesia, por sua retidão, por seu amor pelo Brasil e pelos brasileiros.

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