Clássico antiguerra, "Matadouro-Cinco", de Kurt Vonnegut, ganha edição comemorativa pela Intrínseca

Sátira do autor americano é uma boa pedida para tempos cada dia mais sinistros

Escrito por Dellano Rios , dellano.rios@diariodonordeste.com.br
Legenda: Clássica representação do autorretrato de Kurt Vonnegut: influência do autor ecoa no mercado editorial brasileiro contemporâneo

Kurt Vonnegut (1922 - 2007) achava fácil esboçar um autorretrato. Deixou centenas que, à primeira vista, podem parecer um amontoado de garranchos terminados em uma linha reta. Mas basta comparar com qualquer fotografia, de sua fase madura, para ver que tudo está lá: a cabeleira cacheada e desgrenhada, a boca escondida sob o bigode, talvez sorrindo, e um dos milhares de cigarros que fumou da adolescência ao fim da vida.

A graça do desenho se repete nas fotografias e também nas tramas criadas pelo autor, estando presente nos livros que escreveu e o fizeram famoso. Algo surpreendente para um homem que teve uma vida cravejada de tragédia, como ver a mãe se suicidar num Dia das Mães, pouco antes de embarcar para a Segunda Guerra Mundial, e assiste a uma cidade alemã ser massacrada pelo exército dos Estados Unidos. Ainda assim, Vonnegut ri e faz rir, não como um coach que vê o copo meio cheio, mas com uma ironia demolidora e revigorante.

Um de seus livros - o mais conhecido e celebrado, para ser exato - acaba de voltar às livrarias brasileiras. "Matadouro-Cinco", de 1969, reaparece em capa dura, na edição comemorativa de seus 50 anos, publicada pela Intrínseca. Clássico da literatura antibélica dos EUA, o romance tem parte de sua ação ambientada durante a Segunda Guerra Mundial. Mas o interesse de Vonnegut era mais do que histórico.

O romance foi lançado quando a Guerra do Vietnã estava no auge e, nos Estados Unidos, cresciam exponencialmente os movimentos que se opunham ao conflito, uma máquina de matar jovens americanos e de arrasar o pequeno país asiático. Nesse sentido, o livro se alinha ao veio da contracultura que, entre os anos 1960 e 1970, questionou a instituição da guerra entre nações e criticou duramente as decisões de Washington. São exemplos os romances "Por que nós estamos no Vietnã?" (1969), de Norman Mailer, e "O Arco-Íris da Gravidade" (1973), de Thomas Pynchon.

"Telegráfico esquizofrênico"

Assim como os livros de Mailer e Pynchon, "Matadouro-Cinco" é uma narrativa alucinada, parte determinada pela condição absurda da guerra, com seus horrores intraduzíveis; parte pela atmosférica lisérgica daquelas décadas (Hunther S. Thompson, outro escritor norte-americano e notório connoisseur de substâncias entorpecentes e excitantes, atestava que o Vietnã era uma guerra de soldados loucaços de drogas).

Uma boa amostra desse clima alucinado é a descrição da obra que fez o autor, presente na folha de rosto de "Matadouro-Cinco": "uma dança compulsória com a morte, por Kurt Vonnegut, um teuto-americano de quarta geração agora vivendo numa boa em Cape Cod e que, enquanto batedor de infantaria Hors de Combat feito prisioneiro de guerra, testemunhou muito tempo atrás o bombardeio incendiário de Dresden, a 'Florença do Elba' na Alemanha, e sobreviveu para contar a história. Este é um romance meio ao estilo telegráfico esquizofrênico das histórias do planeta Tralfamadore, de onde vêm os discos voadores. Paz".

Vonnegut narra as desventuras de Billy Pilgrim, um jovem desengonçado, alto e magricela, no campo de batalha. Ele é mandado à guerra na Europa sem roupas e equipamentos adequados e sem interesse em lutar com os alemães. Ele está em Dresden, quando a cidade é bombardeada pelos norte-americanos, provocando um massacre que, em número de mortos, se compara a Hiroshima. Quando é tirado dali, vai parar em um hospital psiquiátrico, encontra alienígenas que parecem desentupidores de pia e fica solto no tempo e no espaço, num vai e vem entre o passado, o presente e o futuro, dimensões que, para os ETs, não são tão diferentes assim.

Acessível

Há anos que "Matadouro-Cinco" circulava no Brasil em edições da L&PM, com tradução de Cássia Zanon. A nova versão foi traduzida por Daniel Pellizzari e traz um texto de apresentação de Antônio Xerxenesky. Vonnegut é um autor raro, profundo e radicalmente simples, ao mesmo tempo, tanto que a introdução passa a largo de interpretar o autor e a obra.

"Ser um autor acessível acabou virando uma postura política e ética de Vonnegut, que atingiu o ápice de seu projeto literário com "Matadouro-Cinco", no qual mergulhou em temas dolorosos do próprio passado, em que foi soldado na Segunda Guerra Mundial, na busca de um sentido - nem que este se revele um clichê, como a frase 'É assim mesmo', repetida à exaustão ao longo do livro, como uma resignação triste e irônica", escreve Xerxenesky.

Filão

Vonnegut foi um dos grandes autores norte-americanos do século XX e também dos mais influentes da segunda metade do século passado. Frequentemente seus livros têm elementos de ficção científica (viagens no tempo, tecnologias ainda inexistentes, seres alienígenas). O autor não gostava de ser associado ao gênero, ciente da posição subalterna que a crítica o impunha. Mas Vonnegut manteve (e foi mantido depois de morto) uma distância saudável da ficção científica de gueto. Falou mais alto, para público e crítica, a natureza satírica de sua obra. E com razão.

Os romances e contos, bem como as ocasionais incursões de Vonnegut pela não-ficção são invariavelmente engraçados e inteligentes. Conseguem, a partir de tramas absurdas, fazer críticas sociais de fôlego. Os alvos do escritor, como o autoritarismo e as seitas religiosas, em "Cama de Gato", para ficar em um só exemplo, são desnudados e reduzidos ao ridículo que lhes é próprio.

Em tempos com vocação para o sinistro, não é difícil entender porque Vonnegut merece ser lido. E uma boa oportunidade se abre. Além de "Matadouro-Cinco", outros três títulos do autor foram recentemente lançados no País: "Cama de Gato" (1963) e "As sereias de Titã" (1959), pela Aleph; e "O que tem de mais lindo do que isso?" (2016).

Matadouro-Cinco

Kurt Vonnegut

Tradução: Daniel Pellizzari

Intrínseca

2019, 288 páginas

R$ 44,90 | R$ 29,90 (e-book)

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