Cineasta cearense cria financiamento coletivo para participar de festivais

Leon Reis é diretor do curta-metragem "Cartuchos de Super Nintendo em Anéis de Saturno", selecionado para os festivais de Roterdã (Holanda) e Tiradentes (MG)

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@diariodonordeste.com.Br

Quando os vídeo games antigos "travavam", o artifício mais usual da molecada era assoprar o cartucho de jogo para o equipamento voltar no tranco. Sem comprovações científicas precisas, para toda uma geração a artimanha resolvia a diversão e funcionava magicamente. Passadas as décadas, os apetrechos tecnológicos evoluíram, deixando essa ação relegada a um passado nem tão distante. Entretanto, algumas coisas continuam a mesma de anos atrás, como por exemplo, as dificuldades de financiamento daqueles que labutam diretamente com cultura.

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O cearense Leon Reis se liga destes aperreios. Diretor do curta-metragem "Cartuchos de Super Nintendo em Anéis de Saturno" (daí as referências no começo do texto), sua obra foi selecionada para dois importantes festivais do universo cinematográfico. O primeiro refere-se ao 48º Festival Internacional de Roterdã, onde integra a mostra "Soul in the Eye". Já em território brasileiro, o filme participa do 22º Festival de Tiradentes. No mapa do cineasta estão Holanda e Minas Gerais. Tratam de dois destinos caros para um realizador independente. Tiradentes até arca com estadia e alimentação, já Roterdã não pode ajudar em nada para o realizador conseguir representar e debater o trabalho.

Legenda: Cruzilhada pela periferia da capital cearense
Foto: Eduardo Barrosa

Diante de mais uma fase do jogo da vida para superar, Reis optou pela união de forças. Desde o fim de dezembro, passou a encampar uma campanha de financiamento coletivo pela internet. A iniciativa é simples e objetiva. Almeja arrecadar dinheiro para o cearense pagar as viagens, além de estadia e alimentação. A data final para concretização deste esforço é até 20 de janeiro. São necessários R$ 7.500 para confirmar participação nestes eventos.

Realizado na Escola de Audiovisual Vila das Artes (EAV), o cearense foi aluno da quarta turma de audiovisual iniciada em 2016. O curta foi produzido em 2018 por meio do ateliê imagem e narrativa da Vila das Artes. A história apresenta Cecil, um jovem homem negro que diante da dor e solidão assopra um Cartucho de Super Nintendo na encruzilhada das Avenidas J e E do Bairro Vila Velha em Fortaleza. Trata de uma peça repleta de fantasia, ficção científica e até elementos de suspense e horror. Foi realizado por intermédio da contribuição de pessoas próximas. Filmou, segundo dados do site que hospeda o financiamento, com um valor aproximado de R$ 500, além de alimentos doados para elenco e responsáveis pela produção.

Frutos

"Cartuchos de Super Nintendo em Anéis de Saturno"foi premiado no último Cine Ceará como "Melhor Filme" pela mostra "Olhar do Ceará". A ficção também foi selecionada para o XI Janela Internacional de Cinema (Recife/PE), 8° Festival Universitário de Alagoas, (Penedo/AL)", 2° Mostra Ousmane Sembene (São Francisco do Conde/BA) e III Mostra de Cinema Negro de Mato Grosso. Outro feito recente foi ter sido incluso pela Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine) no grupo de curtas e longas-metragens que mais se destacaram em 2018.

"Ele é como uma encruzilhada, uma prateleira de realidades que convergem, papocam e reconstroem lógicas distintas para dar nascimento a algo que nem mesmo o cinema consegue enxergar ainda", argumenta o diretor sobre a obra em entrevista ao Verso. A história em torno dos bastidores do filme remetem a um exercício de resistência e alinhamento com a cultura do "faça você mesmo", porém sob o signo dos anos 10. Assim, vale a pena ajudar Leon a destravar mais uma etapa da vida. 

Entrevista com diretor Leon Reis*

Legenda: Leon filmou com um valor em torno de R$ 500 reais, além de doações de alimentos para elenco e produção
Foto: Marina Holanda

Vamos começar pelo início do projeto: como idealizou “Cartuchos de Super Nintendo em Anéis de Saturno”? Qual foi a sua motivação para concebê-lo?  

A imagem que falta. A motivação do "Cartuchos" veio pela falta de projetos nessa cidade que almejem discursar sobre nossa relação com realidades distintas, de um lugar fora do cinema hegemônico e de uma fórmula diferente do que um corpo negro possa vir a interpretar. Ao mesmo tempo tentar se conectar com algo que me é sagrado. Pensei em algo meu que nunca percebi, uma sensibilidade para se falar por aqui em Fortaleza. Vamos então falar sobre dor, isso não é novidade. Então vamos falar sobre video games como uma fórmula de cura. Aí, sim, isso é carregado de uma estranheza nesse sentido cósmico curandeiro tecnológico. 

Do que fala o curta-metragem? O que você priorizou na concepção do material? Você assina direção e roteiro do filme ou apenas um dos dois?

O curta conta uma história de cura e de confronto. Cecil, um jovem homem negro destruído por seu percurso dentro de ambientes de ensino, tratado pelos amigos como mercadoria, planeja um ato: caminhar para o centro de uma encruzilhada no seu bairro, Vila Velha, e assoprar um Cartucho de Super Nintendo. É difícil dizer o que eu priorizei na concepção do material. Diante da falta de estrutura, às vezes tudo que a gente pensa é conseguir terminar o nosso trabalho. Eu dirigi e escrevi o roteiro

Quais os maiores desafios em alavancar um trabalho produzido de forma independente no Ceará hoje? E como observa essa cena, no geral, por aqui?

O filme foi feito dentro do curso Realização em Audiovisual da Vila Das Artes. Tínhamos transporte para os três primeiros dias e os equipamentos da escola. Como os recursos repassados pelo município para o orçamento da escola só nos possibilitaram isso, tivemos um problema enorme com falta de grana para alimentação dentro do nosso set e uma própria grana para emergências. Nos dois últimos dias (o filme teve cinco dias de gravação), como a estrutura da escola só tinha capacidade para conceber transporte para mais de três dias de gravação, gravamos dentro de uma sala da Vila das Artes e infelizmente não podemos arcar com o dinheiro do transporte próprio de nossa equipe para chegar no local de gravação e para voltar para casa.

Era meu primeiro filme. Fazer vaquinhas e catarses da vida pela internet são complicados e cruéis quando a gente nem mesmo obteve uma segurança artística sobre o nosso próprio trabalho. Pedir apoio de outras pessoas também segue meio que uma lógica parecida, as pessoas não costumam doar para aquilo que não é conhecido, que não é de alguém que elas já viram um trabalho ou que tem uma grande capilaridade de contatos para assegurar a aparência de uma possível qualidade para o projeto.

Sobre produzir de forma independente em Fortaleza, temos um ambiente onde equipamentos como a Vila das Artes dispõem de editais livres como o NPD (Núcleo de Produção Digital) para empréstimos de equipamentos para filmagens que estão abertos durante o ano todo. Isso não se vê em todas as capitais desse país, Maceió (AL) por exemplo, nem mesmo um curso de cinema e audiovisual tem e muito menos um programa de empréstimos de equipamentos. Não consigo falar muito sobre a situação das cidades interioranas daqui, sei que a política de editais para captar recursos e produzir curtas e longas pelo Município e Estado encontram problemas com seus vários atrasos. Esses recursos tem a mesma lógica de aceitar projetos de pessoas já dentro do meio artístico, o que acaba por tirar a coragem de muitos colocarem seus projetos nesses editais para captar recurso.

Existe uma prática muito grande de projetos audiovisuais fazendo catarses e vaquinhas para arrecadarem o dinheiro de transporte para equipe nos dias de gravação e para alimentação em set. Normalmente ninguém ganha um salário, mas como a lógica de investimentos nesses trabalhos ainda é muito podada e não madura, acaba por artistas fora das instituições nessa cidade recorrerem a outros meios de captação de recursos financeiros. Tudo para ao menos criar um set parcialmente saudável, o que ainda não alcança a valorização do trabalho de muitos artistas. Pela falta de dinheiro muitos estudantes e profissionais acabam por abandonar esse campo.

Como foi receber a notícia da escalação do curta para os festivais que pretende viajar? 

Nem consigo te dizer, eu tinha uma certa expectativa de que nosso filme fosse aceito em Tiradentes, por sua entrada no XI Janela Internacional de Cinema e conseguir ver nesses dois ambientes alguma paridade na lógica curadora... Mas, Roterdã foi uma surpresa muito grande, a começar por quê não inscrevemos o filme nem nada, fomos CONVIDADOS, isso foi um choque, hahahah!

Para você, onde reside a força de “Cartuchos”, a ponto de fazê-lo ganhar o reconhecimento que está obtendo?  

O Cartuchos é um filme "bizarro" ou como meu irmão Caio César sempre me dizia: 'Bizarre Fucking Crazy'. Ele não é uma narrativa convencional que trata de um assunto específico e se derrama sobre atos organizadamente. Ele é como uma encruzilhada, uma prateleira de realidades que convergem, papocam e reconstroem lógicas distintas para dar nascimento a algo que nem mesmo o cinema consegue enxergar ainda.

Em um momento ele tenta derrubar a lógica da epistemologia canônica do cinema quando a reproduz em um ambiente de tortura. Depois fala de nossas relações fraternais em ambiente institucionais, carregadas da herança hierárquicas racistas e que nos colocam sempre num lugar de serviço com nossos "amigos" mais ricos e brancos. Sempre nos esforçando a percorrer um espaço que, para eles, é tão convencional e para nós é um esforço desmedido.

Importante também é a nossa relação com artefatos vindos de outros mares. O 'Cartucho de Super Nintendo' é um desses, o que as pessoas pensavam quando assopravam um cartucho?, de onde vem esse mito? O que isso fazia na cabeça das pessoas era religar um sistema digital, faiscar um mundo todo em dormência. Imaginei o que o sopro de um preto do Vila Velha religaria nessas trilhas e engenharias japonesas dentro dessa nossa cidade com o histórico do nosso personagem... Acho que as pessoas sentem curiosidade pela a imagem que falta. Elas começam a questionar e a ter estranheza com qualquer repertório que não seja de seu conhecimento. Começam a olhar para aquela imagem, vêem forças em outras lógicas, tentam entender algo e começam a querer compartilhar isso. Importante também que mesmo com nossa precariedade na falta de grana no trabalho, ainda conseguimos sair de uma lógica somente de exibições em mostras universitárias, como é o caso de Roterdã e quando entramos na competitiva nacional de curtas do XI Janela Internacional de Cinema e na III Mostra de Cinema Negro em Mato Grosso.
 
Falando-se propriamente do cinema negro, com realizadores, temáticas e equipe toda negra: de que forma o mesmo está sendo encarado pelo cinema brasileiro? Que tipo de incentivos têm sido dados a produções desse tipo?

O Cartuchos não teve uma equipe toda negra, mas sim sua maioria, vejo importância nisso, dentro de um filme com 26 membros, 16 serem pretxs, um indígena e o resto branca, existe muitos pretxs e indígenas com uma qualidade de trabalho e sensibilidade artística enorme, geralmente essas pessoas são engolidas e escondidas dentro desse meio, nós precisamos ver a nossa força, entender as nossas histórias. O Cinema Brasileiro? Tem de saber qual deles primeiro, o cinema brasileiro preto já existia antes de ser reconhecido pelo cinema brasileiro hegemônico, em sua maioria formado por homem brancos. Nos encaram com medo, as vezes sem importância, não nos deram importância por mais de 50 anos desde o passado Cinema Novo, Adélia Sampaio sempre foi desvalorizada pela Embrafilme, Zózilmo Bulbul fez Alma no Olho (1974) dos restos de filmes que ele atuou, Yasmin Thayná repercutiu KBELA (2015) com força no Brasil só depois de o filme ser extremamente valorizado na europa.

O Edital Afirmativo da Ancine só teve uma edição e já acabou. Se você olhar para Fortaleza, é só ver que a única escola de artes que realmente se preocupa em rasgar sua epistemologia branca e hegemônica para não invisibilizar O Cinema Negro brasileiro e suas raízes foi a Vila das Artes, por conta dos embates da 4ª turma de Audiovisual e nossa coordenadora Kenya Mendes, e  que o resto da escolas artísticas estão fazendo aqui é só manutenção maquiada pra se dizer estar preocupado com o nosso fazer e as nossas estruturas, tutores brancos, professores brancos, grades pedagógicas ainda perdidas dentro de um tempo de Cinemas Novo e Nouvelle Vagues, ainda discutindo se o que é mais importante é Godard, Truffaut ou Glauber Rocha...

O que a experiência da vaquinha online te mostrou?

Que é possível muitas coisas se a gente souber se organizar pra juntar essa grana, é também uma maneira de divulgação do seu trabalho eficiente. Tanto é que no fim do primeiro semestre o meu próximo filme será feito por uma campanha de arrecadação coletiva também.

Quais os próximos projetos que pretende realizar adiante?  

A Torre de Azul Cobalto que Atirou em Mim é meu próximo filme, um curta metragem de ficção científica, acho que é uma boa revelar essa sinopse agora em primeira mão: 

O ano é 2018, o presidente eleito se mata em transmissão nacional. Os jornais dizem ter sido uma transmissão pirata. Uma caravana da verdade percorre o país todo para confirmar sua saúde. Em Fortaleza - CE, Fantasmas começam a ser vistos por todo canto. Amanu, uma mulher negra de pele amarelo marrom, e longos cabelos prateados, é uma dessas aparições, ela está morta, atingida por um tiro de uma das células de proteção da prefeitura de fortaleza no Bairro Demócrito Rocha, faleceu no ano de 2087, vem em 2018 com uma missão, estudar a realidade.

*Entrevista concedida ao repórter Diego Barbosa (verso@verdesmares.com.br)

 

 

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