Cenário onde Rachel de Queiroz viveu, Ilha do Governador (RJ) é revisitada em imagens e diálogos

Sem o mínimo de referência geográfica do local para onde iríamos, encontrar um taxista que morava lá há 42 anos permitiu um passeio imersivo e singular

Escrito por Roberta Souza , roberta.souza@diariodonordeste.com.br
Legenda: A calmaria de fim de tarde na Praia do Jequiá
Foto: Foto: Fabiane de Paula

Custou para um motorista aceitar a corrida no aplicativo. Dois cancelaram antes de José Walter se apresentar ao meio-dia na porta do hotel em que estávamos hospedadas, eu e a fotógrafa Fabiane de Paula, para nos levar ao destino planejado. A Ilha do Governador era nossa escolha por dois motivos: lá ficava a quadra de uma das escolas de samba que homenagearia o Ceará na Sapucaí, no Carnaval de 2019; mas também era o cenário onde Rachel de Queiroz (1910-2003) tinha vivido por mais de uma década.

Legenda: O taxista José Walter no mirante da Praia da Bica, na Ilha do Governador (RJ)
Foto: Foto: Fabiane de Paula

Sem o mínimo de referência geográfica do local para onde iríamos, saber que o taxista que nos conduzia já morava lá há 42 anos foi um alívio. Maranhense, porém filho de pai cearense, José Walter, cujo nome também nos remetia a um bairro tradicional de Fortaleza, comportou-se mesmo como um excelente anfitrião.

Legenda: Detalhes do cotidiano da Praia das Pitangueiras
Foto: Foto: Fabiane de Paula

Nas mãos, eu carregava um exemplar do romance "O Galo de Ouro". Escrito nos primeiros meses de 1950, quando Rachel residia na Ilha, o livro dava algumas indicações de lugares pelos quais a escritora havia passado há cerca de 70 anos, e esse era o nosso mapa. "Cova da Onça? Hoje é ali na Marquês de Muritiba, na divisa de Tauá com Cocotá", atualizava-nos José sobre a área onde vivera a autora.

É claro que sete décadas tinham sido mais do que suficientes para a maioria dos nomes mudarem: de Pixunas para Bancários, de Jequiá para Pitangueiras, de Guarabu para Jardim Carioca. A Ilha de Rachel, à época isolada, sem pontes que a conectasse ao resto do Rio de Janeiro, há muito havia se transformado em um outro lugar.

"A Ilha era mesmo uma aldeia, defendida pela água por todos os lados", escreveu a cearense em prefácio de 1985. "Mas o progresso nos rondava e a gente nem percebia. Recordo que festejamos o primeiro calçamento, soltamos foguetes ao se inaugurar o esgoto na Cova da Onça", destacou Rachel.

Encontro

Num dois de março nublado, atravessamos a "ponte velha" para adentrar o lado ocidental do interior da Baía de Guanabara e ver com nossos próprios olhos essas transformações. Nossa referência era apenas os escritos de Rachel, e a sensação foi de que algo ainda estava preservado ali.

Legenda: Registro de quase-noite na Praia da Guanabara
Foto: Foto: Fabiane de Paula

Na contramão do centro comercial, do trânsito intenso e dos prédios modernos, a calmaria de mirantes com vista para o mar e de barcos concentrados na Praia do Jequiá reafirmava uma descrição que mesmo a cearense já havia desacreditado, trinta e cinco anos depois do primeiro lançamento do livro.

"Acabaram-se as barcas, acabaram-se os bondes, proliferaram os edifícios, instalou-se o progresso para ficar. Agora só resta a saudade. Como diz o samba", lamentava a autora no prefácio.

A sensação de que todo mundo no lugar se conhecia, no entanto, permaneceu. Talvez porque passeamos com José, taxista popular na região, esse sentimento ficou mais evidente. Não fosse ele, dificilmente teríamos chegado à Rua Carlos Ilidro, onde Rachel viveu com o médico goiano Oyama de Macedo por mais de dez anos. Quase sem transeuntes, o local ainda evoca a atmosfera de isolamento valorizada pela cearense.

Legenda: Placa da Rua Carlos Ilidro, onde Rachel de Queiroz morou
Foto: Foto: Fabiane de Paula

Uma moradora mais antiga, que deu o ar da graça no portão, não soube dizer onde precisamente ficava a casa de Rachel. A verdade é que a Ilha sempre foi para ela muito mais do que uma construção, e para nós, que fomos até lá, a concepção, ainda que separada por 70 anos de história, permanece a mesma.

> Curiosidades

- O romance "O Galo de Ouro", de Rachel de Queiroz, foi o primeiro não ambientado na terra natal da escritora. A história se passa na Ilha do Governador, refazendo a trajetória de pessoas humildes com as quais conviveu

- Além da autora cearense, também moraram na Ilha os escritores Lima Barreto e Vinicius de Moraes, e os cantores Renato Russo, Wanderley Cardoso, Waldick Soriano, Assis Valente e Luiz Gonzaga

-  Na região, mais precisamente na Estrada do Cacuia, está localizada a Escola de Samba União da Ilha do Governador, que, no Carnaval 2019, homenageou o Ceará com o enredo "A peleja poética entre Rachel e Alencar no Avarandado do Céu"

- Para passear na Ilha guiado por um taxista anfitrião, recomendo o José Walter pelo telefone (21) 97271.7453

Assuntos Relacionados