Cega e regente de coral na Aerolândia, Maria de Fátima acredita na transformação por meio da música

Aos 25 anos, ela coordena um projeto social com 28 crianças na periferia de Fortaleza

Escrito por Roberta Souza , roberta.souza@diariodonordeste.com.br

O calendário marcava o dia 23 de dezembro de 2015. Na Praça do Ferreira, as crianças do coral Natal de Luz apresentavam o repertório natalino por entre as luzes das sacadas do Hotel Excelsior, como de costume. Lá em baixo, Dona Lúcia acompanhava a filha com deficiência visual, Maria de Fátima, 25, de ouvidos atentos a todos os detalhes musicais, e ensaiava a pergunta que mudaria a rotina das duas nos dias e anos seguintes: "Porque você não faz um coral com as criancinhas lá do bairro?"

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Residentes na Comunidade do Areal, na Aerolândia, mais precisamente na Avenida da Ecologia, paralela ao Rio Cocó, mãe e filha semeavam ali o começo de um sonho. A frequência de pequenos em frente à morada delas já era intensa. A reunião de vizinhos para o churrasquinho noturno no bar do Velho Chico, pai de Maria, era forte atrativo, e, com o coral, o tempo ocioso da criançada poderia ser melhor trabalhado.

"Começamos com oito crianças, incluindo a minha sobrinha Sofia. Elas se desenvolveram na música e, em uma semana, a gente apresentou para o bairro. Foi super-rápido!", lembra a regente, que hoje faz um curso técnico em música, já possuindo também Licenciatura em Teatro, ambos pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE).

As temporadas seguintes fizeram saltar para 28 o número de integrantes do Coral Dona Lúcia, nome dado em homenagem àquela que teve primeiro a inquietação. No coração de Maria, mais do que uma manifestação artística, ela estava construindo ali um trabalho de humanização, semelhante ao que fizeram por ela anos atrás.

Flautinha

A afinidade da regente com música vem desde o berço. "Minha mãe disse que eu só dormia com música. Se não cantasse, eu não dormia", conta entre risos. Caçula e "xodó" da Dona Lúcia, que já tinha outros dois filhos homens, Maria também arriscava com a própria voz aos 3 anos de idade. Queria cantar músicas infantis na banda de pagode do irmão mais velho, que, por sua vez, nunca deixava, temendo que ela quebrasse os instrumentos.

A garota teve que esperar completar 7 anos para, no Instituto dos Cegos, fazer o primeiro contato com uma flauta doce. O apreço foi tamanho que, de tanto andar com o objeto musical para cima e para baixo, "Fatinha" logo passou a ser chamada de "Flautinha".

"Tudo que era música eu ligava com alguma imagem, então foi uma das formas que eu utilizei também pra fixar alguma coisa, pra fixar o que eu 'via'. E isso se transformou no meu mundo. Eu vejo pelo que eu canto, pelo que eu escuto. É como eu consigo também guardar o nome das pessoas, guardar a voz pelo som", descreve.

A deficiência visual é de nascença. Veio ao mundo aos seis meses de gestação de Dona Lúcia, porque tinha pressa de viver, e, naquele momento, sua retina não estava bem desenvolvida. A cegueira total viria aos 7, junto com a formação musical. Mas ainda hoje guarda algumas lembranças visuais dos primeiros anos de vida, a exemplo de algumas cores. "É por isso que a música 'Aquarela' é a que representa melhor a fase que eu enxergava", acredita.

Projeto

Com o passar do tempo, Fátima foi exercitando o dom com outros instrumentos. Queria mesmo era um que lhe possibilitasse tocar e cantar, e encontrou isso no teclado. A participação num projeto social da ONG ABC, em sua comunidade, fez com que ela também desbravasse os horizontes do teatro e do canto. E quando as atividades foram encerradas, coincidindo com o aumento da criminalidade na região, sentiu que morria ali um refúgio. "O coral me possibilitou bastante inclusão, porque eu cantava, mesmo sem ter noção de música. As crianças vinham conversar comigo não porque eu era deficiente, mas porque eu cantava, e isso foi uma coisa muito legal pra mim. Foi mais um marco da música dentro da minha vida", recorda.

"Eu tenho um sonho, eu só quero que as crianças do Coral Dona Lúcia sejam conhecidas, não porque elas são regidas por mim, mas pelo talento delas, porque elas têm de sobra...", suspira a jovem.

Logo que resolveu fundar o próprio projeto, tinha este da infância como referência. "Se ficou na minha mente, se ficou na minha memória tudo que a ONG fez por mim, vai ficar na memória deles também. E eles não vão sair daqui artistas, eu sei disso, mas vão sair com alguma coisa humana dentro deles. Vão se colocar no lugar do outro, assim como fazem isso dentro do coral. Eles se colocam no meu lugar quando eu tô com problemas pra conseguir coordená-los, se policiam, pensam em mim e pensam neles também", afirma emocionada.

Do que foi semeado no Natal de três anos atrás, ela ainda espera alguns frutos. Para isso acontecer, Maria necessita de infraestrutura e divulgação. "Instrumentos a gente sempre precisa! As flautas doces, um teclado sensorial para me ajudar na regência, microfones e um som, principalmente", conclui a regente, enquanto ouve o farfalhar das árvores e a correnteza do Rio Cocó, no recanto que considera sua própria Copacabana.

Serviço:

Apresentação do Coral Dona Lúcia

Dia 25/12, às 18h, na Praça do Trem (Entre as Ruas Sagrada Família e Trindade, no bairro Aerolândia). Contato: (85) 98626.8968


 

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