Artesão grava em madeira tradição natalina do presépio em Juazeiro do Norte

Boni, vencedor do XXII Concurso de Presépio Artesanal promovido pela CeArt, grava sensível visão de mundo na madeira. Também historiador e sanfoneiro, entende a arte como alimento de felicidade e resistência

Escrito por Antonio Laudenir , laudenir.oliveira@svm.com.br
Foto: Foto: Rogério Resende

A seleção polonesa de futebol viveu dias áureos nos Mundiais de 1982 e 1986. Em campo, as campanhas vitoriosas repercutiam o talento do jogador Zbigniew Boniek. No Cariri cearense, o futuro pai de um José decidiu homenagear o craque estrangeiro. O causo envolvendo a origem do próprio nome é contado com um sorriso dos mais fartos por José Bonieck Brito Tavares, o artesão Boni.

Trinta anos mais tarde, o universo criativo do artista permitiu a vitória no XXII Concurso de Presépio Artesanal, organizado pela Central de Artesanato do Ceará (CeArt). A iniciativa ilumina as inúmeras tipologias reconhecidas no Estado. O desafio é reconstruir a secular história do nascimento do Menino Jesus. Ao detalhar o feito, o juazeirense é reflexivo. O presépio é uma mensagem de esperança (veja quadro "Olhares vivos").

O primeiro contato da reportagem com o escultor aconteceu no início de novembro passado. A casa e oficina do artista, situadas no bairro do Limoeiro, em Juazeiro do Norte, foram cenário do filme "Lampião, o Governador do Sertão", próximo documentário do cineasta Wolney Oliveira. Boni e a esposa, Débora Raquel, são personagens do longa.

Legenda: Peças articuladas como a do cantor Belchior demonstram a busca de Boni por novas técnicas
Foto: Foto: Débora Raquel

Câmeras, luzes e outros apetrechos do fazer cinematográfico se moldam ao ambiente dominado por ferramentas, frases de imortais da literatura e severa paixão por cultura. Inclua neste cenário o presépio vencedor, ainda no início da produção. Compreender a realização dessa obra nos pede um mergulho na trajetória do artista.

Munido de um canivete, criou a primeira obra por volta dos 10 anos. A imagem de Padre Cícero (1844-1934) virou um mimo destinado ao altar da mãe. Hoje, toca o próprio negócio na companhia inseparável de Raquel. Boni é autor de procurados "bonecos cabeçudos", originados a partir do manejo com madeira da amburana.

Historiador, sanfoneiro e devoto da cultura popular, o cearense assina arte marcada pela fusão entre o sacro e o pop. As inspirações unificaram expressões e estéticas das mais díspares e ricas. Das matrioscas russas ao domínio no barro de Mestre Vitalino (1909-1963). Percorreu da animação "South Park" ao legado de Mestre Noza (1897-1983).

Os dois dias de filmagem com o casal foram partilhados na companhia de bolo, café e reflexões generosas em torno do fazer artístico nos dias atuais. Futura bibliotecária, Raquel evidencia a notável sensibilidade do companheiro em criar esculturas dotadas de alma e identidade.

Se Boni cuida da criação, a sócia atua no contato com clientes e manutenção das redes sociais. Um dos canais de venda mais eficientes à labuta tocada pela dupla.

Busca por felicidade

O ano da guinada foi 2015. Boni ocupava posto de trabalho formal. Aquela coisa de carteira assinada, plano de saúde, horários. Entretanto, era infeliz. A coragem ganhou corpo com o apoio familiar. Pediu as contas e passou a atuar junto à esposa. O começo foi difícil e o horizonte ficou favorável quando conheceram a Feira Cariri Criativo. O projeto da Universidade Federal do Cariri (UFCA) é dirigido pela professora Cleo do Vale e presta fomento à cultura criativa da região.

"O que ganhamos dá pra viver, não somos ricos nem é a intenção. Estamos até tranquilos diante do momento do País, desse desmonte da cultura. Principalmente com esse público mais jovem que conseguimos alcançar", argumenta.

O início contemplou figuras tradicionais do Cariri. Como a oferta de artesãos talentosos no mercado é farta, foi preciso reinventar. "Os bonecos com personalidades tradicionais agradavam turistas. Mas o pessoal daqui, inclusive os jovens, não compravam. Passamos a fazer a linha pop e o público local gostou. A partir daí, conheceram meu trabalho e começaram a adquirir os tradicionais também. Fez os jovens ter conhecimento de figuras da nossa cultura".

O olhar do historiador o fez compreender o quanto a cultura humana de qualquer sociedade é dinâmica. "Existe a tradição, mas cada nova geração adquire informações novas. Podemos ser influenciados pelas coisas que vêm de fora, é claro, sem perdermos a identidade e originalidade", aconselha o realizador. Nada de virar as costas para o progresso. É vital abranger as duas realidades.

Os talhes repletos de liberdade geraram vultos como Carolina de Jesus (1914-1977), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Ariano Suassuna (1927-2014), Frida Kahlo (1907-1954) e Belchior (1946-2017). As imagens pop estão juntas de Rita de Cássia (1381-1457), Clara de Assis (1194-1253), Frei Damião (1898-1997), Padre Cícero e toda a religiosidade profunda do Brasil. Ah, sem esquecer Luiz Gonzaga (1912-1989), inspiração de Boni tanto paras as esculturas como no dom de cantar com a inseparável sanfona.

A junção de cores e o formato das peças, com 13cm de altura, aproximam o trabalho da estética "toy art". Boni também desenvolve chaveiros de madeira e quadros para parede. Atende encomendas e encara o desafio de produzir artefatos em maior escala. Exemplo do casal Lampião e Maria Bonita, feitos especialmente para o filme do qual participou.

"Nós, principalmente aqui do Ceará e do Cariri, temos uma cultura tão rica que mesmo com todos os ataques sofridos, privações feitas, vamos resistir. Passamos por coisa pior. Tem coisa mais difícil que a seca? O momento é tenso? Sim. Vamos amargar, vamos. Mas resistimos. Nós que trabalhamos com arte e cultura devemos criar cada vez mais. Não tenho medo, a cultura popular, nordestina, do Cariri é maior do que isso. Nunca vai acabar. A palavra é resistência, sempre", defende o artesão Boni.

Olhares vivos

Estreante no concurso promovido anualmente pela CeArt, Boni nunca tinha produzido lapinha. Um tronco oco e sem utilidade permitiu ao artesão investir na criatividade e recontar a chegada do Menino Jesus. O processo de construção levou cerca de 20 dias. Os três Reis Magos ganharam a referência dos Irmãos Aniceto.

A beata Maria de Araújo, Padre Cícero, Frei Damião e Luiz Gonzaga são espectadores do nascimento. A pomba do Espírito Santo ganhou as cores do pássaro soldadinho-do-araripe. Jesus nasce num cenário rural, porém o Cariri urbano e pobre é retratado pela comunidade do Alto da Penha.

O vaqueiro traz a presença do pastor e o detalhe emociona. Boni homenageia o avô falecido em outubro. É arte dedicada ao ente querido. Ao lado de Boni (vencedor), um total de 21 artistas participou desta 22ª edição em 2019. Elisvaldo Cavalcante (fios /tecidos) conquistou o segundo lugar, Marciana Sampaio (madeira/argila), o terceiro, e Lusyennir Lacerda (cera, massa, gesso e parafina) ficou com o quarto lugar. Boa parte dos trabalhos participantes ainda está exposta na loja da CeArt, localizada na Praça Luíza Távora, na Aldeota, até 6 de janeiro. O presépio de Boni, no entanto, já foi vendido.

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