Ácida e obscena, "Fleabag" consagra comédia sob perspectiva feminina

Grande vencedora do Emmy Awards 2019, a série traz narrativa inteligente sobre os impulsos de uma mulher com moral questionável, munida de diálogos instigantes quanto à vida

Escrito por Redação ,
Legenda: Os diálogos da série provocam sensações que circulam entre uma dor na barriga ao rir de uma reflexão irônica e uma dor no coração ao presenciar agonias da realidade.

"Passei grande parte da vida adulta usando o sexo para evitar o vazio dentro do meu coração", confessa a protagonista de "Fleabag", cujo nome não nos é dito, na segunda temporada da tragicomédia de Phoebe Waller-Bridge, lançada em maio deste ano. E foi por tal que, não somente a criadora, mas também roteirista e atriz, foi a principal vencedora do Emmy Awards 2019, conquistando quatro estatuetas e se consagrando na premiação.

"Fleabag", termo britânico para alguém irritante, obsceno e com má reputação, parece dar conta da personagem para a qual a trama converge. Afinal, trata-se de uma mulher londrina, de 30 e poucos anos, sexualmente ativa e com moral questionável, que lida sarcasticamente com os desafios da vida adulta, relacionamentos e luto.

Apesar da impressão inicial, Flea (como acabamos chamando a protagonista) se esforça para conter seus impulsos autodestrutivos e, em busca de si mesma, provoca quem a assiste com verdades desconfortáveis sobre a condição feminina. Problemas de relacionamento, frustração sexual e profissional e conflitos familiares são assuntos que contornam toda a série.

Detalhes

A narrativa surge inicialmente em 2013, como um stand-up escrito e atuado por Waller-Bridge. Pela qualidade, o material chamou a atenção da BBC, que pediu uma adaptação para a TV. A série estreou em 2016, na rede inglesa.

Assim, com forte influência do teatro, além do grande impacto que traz a história dessa tal mulher que coloca sexo à frente de toda e qualquer agonia da existência, o programa fala com o público de maneira ímpar. Literalmente.

A quarta parede é quebrada a todo momento, e a protagonista fala diretamente com o espectador de maneira intimista, como se fosse um melhor amigo ou, até mesmo, sua própria consciência. Aparentemente sozinha, sem pessoas para fazer companhia, Flea conquista a empatia do público compartilhando brincadeiras, sentimentos e alguns segredos que somente nós (e ela) sabemos.

Angústias

Aos poucos, entre pensamentos inteligentes e irônicos, descobre-se o que ocasionou a angústia da personagem que já nos é tão íntima: a morte brutal de sua melhor amiga, Boo.

De braços dados com o luto, Flea ainda tem que cuidar do porquinho-da-índia deixado por Boo, administrar um café à beira da falência e manter minimamente uma relação com as pessoas que a orbitam, como a irmã neurótica e bem sucedida; o cunhado alcoólatra; o pai esquisito, e a madrinha efusiva, interpretada pela ganhadora do Oscar de Melhor Atriz neste ano, Olivia Colman.

A segunda temporada, premiada e responsável pelo sucesso da série, traz ainda o personagem de um padre, interpretado por Andrew Scott, que consegue, pela primeira vez na trama, perceber as divagações mentais da protagonista, arrancando-a de seu estado confortável de solidão e acidez.

Abrangência

Os universos criados por Waller-Bridge retratam mulheres que lidam com seu furor, transitando entre a violência e a excitação. Essa marcante característica também perpassa suas outras duas criações, as séries "Crashing" e "Killing Eve" - esta última também ganhadora do Emmy, com Jodie Comer levando a estatueta de Melhor Atriz em Série de Drama.

Não estão nos planos da roteirista dar continuidade a "Fleabag", pois já considera a história completa nas duas temporadas existentes. Entretanto, a narrativa volta aos palcos, desta vez na Broadway, nos Estados Unidos. Além disso, a criadora mantém-se também em produção com seus próximos trabalhos: a série "Run", para a HBO, e o próximo filme de 007.

Phoebe, intensa, misteriosa e absurdamente irônica, dá traços de sua personalidade em cada programa que assina. No mais recente rebento sob sua tutela, ela mergulha de cabeça nos conflitos da vida cotidiana de uma mulher e articula as questões nela existentes de maneira a causar no público uma sensação simultânea de aflição e também entusiasmo.

Curta e com poucos episódios, "Fleabag" vale a pena ser vista e revista exatamente por tratar, com humor e maestria, sobre assuntos difíceis de ser abordados e discutidos, como a solidão e o sofrimento. O nome por trás dessa série que tem tudo para angariar mais admiradores, sobretudo após a premiação da qual saiu consagrada, consegue capturar momentos do cotidiano que, de tão sutis, só conseguem ser percebidos quando dramatizados.