Poder Judiciário investe em modernização e terá que se adaptar ao pacote anticrime

Ao passo que o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) apresenta projetos digitais para implementação no âmbito do Estado, o Poder Judiciário deverá traçar novos paralelos para cumprir medidas impostas pelo pacote anticrime

Escrito por Cadu Freitas , carlos.freitas@svm.com.br
Legenda: TJCE dará prioridade ao Programa Celeridade, que engloba o aprimoramento da rede de dados e a digitalização dos processos físicos
Foto: Reprodução

A tônica para 2020 é modernização. É com essa palavra que o presidente do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), desembargador Washington Araújo, pretende encaminhar as atividades do Poder Judiciário. Segundo o magistrado, o órgão dará prioridade ao Programa Celeridade, que engloba o aprimoramento da rede de dados e a digitalização dos processos físicos.

De acordo com o presidente do TJCE, com a substituição dos processos físicos pelos eletrônicos, a ideia é ganhar 30% de velocidade na tramitação das ações. "Além disso, é possível trabalhar no processo eletrônico de qualquer lugar, a qualquer hora, o que possibilita a atuação de juízes e servidores lotados em comarca diversa daquela onde tramita o processo", diz.

Além da modernização, há a pretensão de continuar com atividades que deram certo, como o Programa Tempo de Justiça - que visa acelerar procedimentos criminais sobre crimes dolosos contra a vida, cuja autoria tenha sido esclarecida. Segundo o desembargador, o TJCE "continuará envidando todos os esforços para aperfeiçoar o programa e até mesmo ampliá-lo para outras comarcas. Sempre podemos melhorar e, no tocante ao Judiciário, estamos afinando o planejamento, inclusive na região do Cariri, para que possamos dar uma resposta mais rápida à sociedade".

Estruturação

De acordo com o presidente da Associação Cearense dos Magistrados (ACM), Daniel Carneiro, a modernização é importante, mas não é suficiente. "É necessário que junto com ela também venha um maior investimento na contratação de servidores e assessores de juízes, naquele local em termos de estrutura de trabalho", pontua.

Conforme o advogado Leandro Vasques, ainda é "prematuro" tecer comentários sobre os processos de modernização do TJCE, mas ele avalia que a atual gestão "tem revelado uma criatividade e ousadia de gerenciamento que nenhuma outra demonstrou". Contudo, Vasques acredita que "o ideal mesmo seria a preservação das comarcas que foram extintas".

Para o criminalista e professor da Unifor e da UFC, Nestor Santiago, a modernização da Justiça estadual "é uma necessidade que já se impõe há muito tempo". Além das ferramentas que estão sendo implementadas, Santiago crê que "é importante que a videoconferência seja também uma realidade em todas as comarcas".

Pacote anticrime

Outra discussão que fica para 2020 é como o Tribunal irá se adaptar às questões do pacote anticrime, sancionado na semana passada. Em 23 de janeiro, o documento entra em vigor, e, dentre outras ações, o Poder Judiciário terá que instituir o "juiz das garantias", que presidirá as ações iniciais, deixando espaço para outro juiz cuidar da sentença.

O TJCE informou que não se pronunciará sobre o tema até o fim do recesso, mas a ACM criticou a falta de tempo para que os tribunais gerenciem a nova norma. "Na justiça estadual, aproximadamente 40% das comarcas são de vara única, com um único juiz. Com menos de 30 dias e recesso judiciário, os tribunais vão ter um prazo muito curto para fazer uma adaptação", pontua o presidente da ACM, Daniel Carneiro.

A visão dos advogados sobre a nova lei

Qual a sua avaliação sobre o pacote anticrime?

Leandro Vasques: Em um país com elevados índices de criminalidade, seja violenta ou de colarinho branco, inovações legislativas como o chamado pacote anticrime costumam ser bem recebidos pela sociedade. Contudo, é importante fazer duas ressalvas básicas: a mera edição de leis não significa combate efetivo ao crime e nem todos os dispositivos legais do pacote representam mudanças com a mesma finalidade. Por exemplo, o chamado juiz de garantias representa um avanço considerável do caráter acusatório a que se propõe o nosso sistema de justiça criminal, no qual a figura do magistrado deve permanecer na mesma distância entre o acusado ou investigado e o acusador ou investigador, agindo apenas quando provocado. Por outro lado, o elastecimento desnecessário da legítima defesa em favor de agentes de segurança pública pode significar um enfraquecimento das garantias constitucionais. De todo modo, muitas discussões judiciais, principalmente no STF, ainda devem ser travadas até que possamos aferir com maior exatidão os efeitos do pacote anticrime.

Nestor Santiago: Acredito que ele tenha pontos bons e ruins. São vários assuntos tratados na referida lei, que produz modificações profundas principalmente na estrutura do processo penal brasileiro e também na delação premiada. Acredito que ainda é cedo para tecer comentários mais aprofundados, e que serão melhor desenvolvidos com o passar do tempo, haja vista que o projeto chegou de um jeito ao Congresso Nacional e saiu de outro, inclusive contando com vetos inesperados, bem como a aprovação de uma parte que sequer se cogitava que o presidente iria aprovar - o que é o caso do juiz das garantias.

Como você avalia a instituição do juiz das garantias? 

Leandro Vasques: A figura é interessante, mas nosso Poder Judiciário não está preparado para mais essa ideia importada. Fiquei até espantado com uma previsão de apenas 30 dias para a lei entrar em vigor... No mínimo 120 dias seriam necessários para os Poderes Judiciários Estaduais (na esfera da Justiça Federal vejo ser mais viável, pela estrutura que dispõem) tentarem se organizar, mas analisando o instituto do “juiz das garantias” em si acho inadequado a própria nomenclatura: então os demais juízes não são garantidores sociais? Seriam carrascos insensíveis? Ou não garantiriam nada? Nem a boa aplicação das leis? Não sou muito fã de soluções importadas, ainda mais quando vêm de países muito mais desenvolvidos e com estruturas muito distintas do nosso... Mas a ideia não é de todo ruim, ela apenas carece que o Poder Judiciario (especialmente dos Estados) tivesse meios de pô-la em prática sem comprometer a sua essência.

Nestor Santiago: O juiz de garantias é um clamor da academia brasileira. A existência de juízes diferentes - um que controla a investigação, outro que conduz a ação penal - é essencial para se evitar a contaminação da mentalidade do juiz que julga a causa com aquilo que foi coletado durante a investigação criminal. É uma mudança radical na forma de se compreender o processo penal no Brasil, e por isso está sofrendo grande resistência, principalmente por associações de magistrados e de membros do Ministério Público.

O aumento da pena máxima de 30 para 40 anos é uma boa decisão ou precisa ser revista?

Leandro Vasques: Acho o aumento do limite de pena de 30 para 40 (anos) relativamente inútil. De nada adianta embrutecer a legislação se a realidade não é transformada. Deveria haver também um aperfeiçoamento do Sistema Penitenciário, de se compreender como essa pena será executada. Nos moldes atuais, onde nossas unidades prisionais mais parecem masmorras medievais ou sucursais do inferno, onde o indivíduo fica submetido a um ócio esplêndido apenas pensando 24 horas como cavar um túnel ou escalar a muralha, onde menos de 8% da massa carcerária tem uma ocupação (estudam ou trabalham na unidade)... Devemos analisar a complexidade do problema e chegaremos à conclusão de que o enfrentamento da violência exige uma série de medidas. O simples endurecimento da lei é apenas uma forma de dar uma resposta ao clamor social e para o parlamento (desgastado moralmente) tentar recuperar sua imagem diante da opinião pública, gerando uma sensação ilusória de segurança. 

Nestor Santiago: Aumentar o tempo de cumprimento da pena privativa de liberdade de 30 para 40 anos tem efeito meramente simbólico e não muda em nada o quadro caótico das prisões brasileiras. Trata-se de medida populista que dialoga somente com aqueles que entendem que bandido bom é bandido morto.

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