Perícia confirma mortes por tiros de fuzil em Milagres

A Polícia Civil já tem confirmação do laudo de balística das mortes em Milagres. Investigação jornalística vai fundo no caso e monta o quebra-cabeça que responde quem matou os reféns

Escrito por Melquíades Júnior , melquiades.junior@diariodonordeste.com.br

A série de evidências obtidas desde a trágica madrugada de 7 de dezembro, no município de Milagres, colocou os investigadores numa estrada de pouco ou nenhum atalho. Não bastassem os depoimentos de quem presenciou o tiroteio, sobre a ação policial, a confirmação de que projéteis de fuzis atravessaram os corpos dos reféns reafirma o enredo principal já levantado pelos investigadores: os reféns, além dos próprios suspeitos, foram mortos na madrugada pelos policiais militares do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate) que tentavam frustrar o roubo aos dois bancos da cidade.

As informações que seguem nesta reportagem são resultado de três meses de apuração, acesso a documentos sigilosos, várias visitas às cenas dos crimes, encontro com diversas testemunhas oculares e outras fontes que direta ou indiretamente acompanham o caso, considerado de "alta complexidade", mais por sua gravidade do que por mistério.

Muitos não querem ser identificados, seja por medo ou por obrigação, em meio ao silêncio das forças de segurança "para evitar pré-julgamentos", disse um policial. No entanto, desde o primeiro registro da ocorrência, consta como latrocínio (roubo seguido de morte) na ficha dos suspeitos presos após a tentativa de furto aos bancos. Alguns deles não possuem antecedentes criminais.

Testemunhas oculares dizem não ter dúvida de que partiram da PM os tiros que mataram os reféns. Com a constatação, pelo laudo de balística, das mortes por tiros de fuzil, tem-se mais um contraponto à, já insustentável, afirmação de policiais de que viram reféns sendo mortos pelos próprios assaltantes. Outra evidência está em documentos a que tivemos acesso e diz respeito às apreensões das armas usadas pela quadrilha, que portava pistola Ponto 40, revólver 38 e espingarda calibre 12mm. Nenhum fuzil.

Os reféns sobreviventes Genário e Fernandes, irmão e pai da cearense Edneide, respectivamente, confirmam, assim como outras testemunhas ouvidas pela reportagem: não houve sequer tempo de disparos dos suspeitos.

Ao contrário do primeiro depoimento de Genário Laurentino, na manhã de 7 de dezembro, em que está apontado "que chegou a ver os criminosos atirando contra os policiais", tal afirmação nunca teria ocorrido, segundo a testemunha. A reinquirição de seu pai, três dias depois por outra equipe da Polícia Civil, já deixava claro "que os policiais atiraram na sua direção na intenção de matá-los, pois foram muitos tiros na direção do declarante e de seu filho".

A família de Edneide, a cearense morta, declarou pelo menos duas vezes aos Policiais civis que os tiros observados, tanto em sua direção quanto na dos assaltantes, vinham dos policiais militares.

Uma ação que começou "surpreendente", seguida de "trágica", "desastrosa" e, após as investigações vem se revelando criminosa.

A ocorrência

A quinta-feira, 6 de dezembro, era o começo do fim. Pelo menos 36 policiais militares, divididos em três grupos de 12, ficam de prontidão em ruas paralelas aos bancos em três cidades do Cariri: Brejo Santo, Missão Velha e Milagres. Tinham motivo: dias antes, escutas telefônicas davam conta de que uma quadrilha interestadual iria atacar bancos na Região.

A Polícia estava no encalço da quadrilha que vinha aterrorizando pelo menos três estados nordestinos. Com a informação, via escutas, da iminência de um novo ataque, a hipótese era de que fossem os mesmos que atacaram a agência do Bradesco em Abaré, na Bahia, em três diferentes momentos: novembro de 2016 e nos meses de junho e novembro de 2018. Grupo interestadual que poderia estar por trás, também, da explosão do Banco do Brasil em Nova Olinda, em julho de 2017.

Em todas essas situações, o mesmo "modus operandi": uso de reféns na madrugada, tiros contra destacamento policial e invasão aos bancos visando chegar aos cofres. O elemento surpresa era o ponto forte dos ataques. Em Nova Olinda, uma adolescente comemorava seu aniversário de 15 anos com amigos na calçada de casa quando foi abordada pelos criminosos.

- O que faz a essa hora na rua?

- Comemorando meu aniversário.

Era só um motivo para usá-la como refém na fuga, sendo liberta com outros moradores quando a quadrilha deixava o centro da cidade.

Fim de ano em bancos do Interior significa cofre cheio, sobretudo com dinheiro de aposentados e servidores públicos. A Polícia Militar sabia disso e queria fazer do fator surpresa o revés dos assaltantes.

Sob o comando do major Antônio Gonçalves Cavalcante, uma equipe de 12 homens do Gate é colocada a postos em carros descaracterizados por trás da Prefeitura de Milagres e em ruas paralelas, todas próximas ao Banco do Brasil e Bradesco, agências vizinhas.

Interceptados

Por volta de 1h30, o motorista Isaquiel Silveira, segue em um caminhão da transportadora FedEx em direção a Fortaleza, com seu filho menor de idade, quando é abordado na BR- 116 por uma camionete S10, já tendo passado 5km da entrada de Milagres. Rendido pelo homem armado e encapuzado, é obrigado a posicionar o veículo atravessado na rodovia. O homem dá um tiro em um pneu dianteiro e, ao dar a volta para acertar o outro, Isaquiel corre para o matagal com o filho.

Pelo menos dois carros do bando esperam os próximos veículos. Quem chegar primeiro vira refém. Surge um Celta preto, dirigido por Genário, que veio com os pais Fernandes e Lurilda buscar a irmã Edneide, vinda de São Paulo.

Numa Ranger, também vindos do Aeroporto de Juazeiro do Norte, estavam João Batista e o filho Vinícius. Os dois foram buscar Claudineide (cunhada de João), seu esposo Cícero e o filho Gustavo. Todos para passar o Natal na casa de João Batista em Serra Talhada.

As famílias são abordadas pelo bando, distribuídas entre quatro carros e levadas para o centro de Milagres, ao encontro dos bancos, da Polícia e da morte. Antes, os sequestradores tentam incendiar a S10 em que vieram para abordar o caminhão, jogando gasolina por cima. Não conseguindo atear fogo no primeiro instante, e na pressa, desistem. Às 2h, os carros cortam o silêncio do centro de Milagres e passam pelos policiais, que aguardam o "momento certo".

Hora do agora

A deixa acontece quando todos saem dos veículos, com exceção do Celta, onde estão os reféns Genário e Fernandes. Filho e pai são retirados e ficam sentados na calçada do Banco do Brasil. Dois homens quebram a vidraça da mesma agência e seguem em direção às demais portas. A intenção é colocar a carga explosiva no Bradesco.

Às 2h10, os suspeitos e reféns são surpreendidos com uma sequência de tiros disparados pelo Gate. Os primeiros em direção à entrada do Bradesco, onde os explosivos já eram colocados. As cinco pessoas da família pernambucana são colocadas em fila, de mãos dadas, como escudo de dois assaltantes, no cruzamento das ruas Padre Misael Gomes com José Esmeraldo, muito próximo a um poste.

A PM dá um tiro de fuzil e acerta a cabeça de um dos adolescentes (Gustavo ou Vinícius). Claudineide grita num desespero que é ouvido por diversas pessoas, incluindo as que estão em suas casas (acordaram com a quebra da vidraça do Banco do Brasil, antes do primeiro tiro). Deitados no chão, Genário e o pai Fernandes veem claramente que são pessoas "vestidas normalmente", porque até então só viram os "encapuzados".

Não demora e uma rajada de tiros de fuzil elimina um a um os outros reféns, enquanto os suspeitos, logo de retaguarda, tentavam se esconder atrás de um poste.

Pegos de surpresa e sem conseguir fazer disparos de revide, os assaltantes tentam fugir. Um deles é alvo de um dos policiais posicionados na rua lateral e já cai sem vida. Outro é abatido na frente da Farmácia Santa Cecília.

Outros dois ainda tombam próximo à Prefeitura, e um terceiro conseguiria cruzar a rua, dobrar à direita e invadir a casa de Edilânia, mantendo-a refém com os filhos de um, oito, 11 e 13 anos de idade.

Na BR-116, tentando escapar do tiroteio no Centro, três suspeitos fogem no Celta com Lurilda e a filha Edneide. Ainda pegaram o aposentado Zé Lima, que abriu a porta para ver o que era. Estava ali de escudo, obrigado pelos bandidos a se segurar no capô do carro.

Na casa do Zé, um dos suspeitos segura a sua esposa firme pelo braço e aponta uma arma de cano longo para sua cintura. Ela consegue se soltar e corre para dentro de casa. "Meu Deus, ele poderia ter atirado em mim ali", pensou depois. Tiroteio segue ao fundo.

- Pula, pula!

Era um dos bandidos dizendo a Zé Lima, em cima do capô, que saísse dali. Havia um fotossensor não muito longe, tê-lo em cima do carro não era suspeito, mas evidente.

-Pula!

O aposentado, apenas com um calção de dormir, obedece. "Seja o que Deus quiser". Caiu próximo ao acostamento e ficou imóvel esperando que ali fossem atirar. Em casa, a esposa reza diante de um pequeno altar que tem em casa, pedindo às santas que o marido volte são.

Com as pernas tremendo, o aposentado caminha pela rodovia. Alcança um posto de gasolina. Bate na porta, grita, pede que apareça alguém. Nada. Pega o rumo de volta para a cidade e alcança a casa de um parente. Liga para a esposa, que chora aliviada.

A PM fecha o cerco ao Celta e atira. Edneide, que vinha no centro do banco traseiro, é alvejada com um tiro que atravessa o olho direito. Tem morte imediata. Outro acerta o assaltante que também vinha no banco traseiro. O motorista acelera o carro para furar o cerco, quase atropelando um dos policiais antes de abandonar o veículo e fugir, sendo encontrado mais tarde.

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