Jovem que perdeu família em Milagres relembra últimas conversas com a mãe no WhatsApp

Stefany Tenório teve o pai, a mãe e o irmão alvejados por tiros em tentativa de assalto a bancos no Interior do Estado

Escrito por Melquíades Júnior , melquiades.junior@diariodonordeste.com.br
Legenda: Stefany, CLaudineide, Gustavo e Cícero, os três últimos mortos na tragédia de Milagres, em dezembro de 2018
Foto: Arquivo Pessoal

“Tinha dias que acordava e pensava que ia ver meu irmão na sala, meus pais no quarto. Hoje acordo precisando entender que não estão mais aqui”. Uma parte do tempo insiste em não seguir na vida de Stefany Tenório dos Santos, 20 anos, que concluiu o Ensino Médio e agora procura emprego. Se para os outros são quatro meses desde a conhecida “tragédia em Milagres”, para ela são mais de 120 dias sem o pai Cícero, a mãe Claudineide e o irmão Gustavo.

Decidiu não viajar. "Só sentia um sentimento que eu tinha que ficar aqui [em Carapicuiba, onde morava com a família]. Eu sentia isso, colocava na minha cabeça... que eu tinha entregado um currículo". 

Ficou só em São Paulo, e ainda tenta entender. Porque antes de precisar chorar de luto ia tudo bem, e quando chorava era porque queria viajar também para Serra Talhada, casa dos parentes em Pernambuco. Não queria que eles vissem, mas chorou no quarto. Só não sabia explicar por que também queria ficar, pela primeira vez não ir junto.

As mensagens com a mãe no WhatsApp (nomeada em contatos como ‘Barbiezinha’) parecem a volta do lugar de onde preferia não sair:

6 de dezembro, 20:16

— Acabamos de chegar em Campinas.

— Amém, mulher. Vocês vão entrar no avião que horas? Não estão com fome não?

 

Preparativos

Ninguém sabia quem estava mais ansiosa. Dias antes da tão esperada chegada ao Aeroporto de Campinas, Stefany e a mãe já arrumavam as malas. Claudineide comprou um tênis para embarcar e um salto novo que usaria no seu aniversário na semana seguinte (em 13 de dezembro completaria 43 anos). Já no aeroporto, enquanto esperava a hora do embarque, seguia conversando com a filha.

6 de dezembro 21:08

— ‘Guga’ não tá querendo dormir não?

— Que nada. Tá jogando.

— Ai, meu Deus kkk

Guga é Gustavo, de 14 anos, o irmão que adorava jogar vídeo game e já sonhava num futuro nessa área tecnológica. Seis anos mais velha, Stefany prometeu a si que cuidaria do irmão nessa vida.

 

22:30

— Acabamos de entrar no boingue.

— Façam uma boa viagem

 

7 de dezembro, 01:42

— Chegamos

— Aí, sim. O tio já tá aí pra buscar vocês? Está todo mundo bem aí?

— Estamos descendo agora

Stefany ainda tenta alcançar o último agora da mãe, aquele em que João Batista e o filho Vinícius aguardavam no saguão do Aeroporto de Juazeiro do Norte. Porque entre 01:42 e 02:15 tudo o mais acontecia: família é sequestrada na rodovia, feita de escudo ao lado da agência do Bradesco em Milagres e, de tiros certeiros, fuzilada, literalmente.

Sem saber de nada, a jovem acorda assustada às 3:30, depois às 6h, depois às 10h:

— Muié, bom dia, já acordou?

11:04

— Mãe, cadê você?

 

Já era manhã de sexta-feira, e os familiares em Serra Talhada tentavam encontrar um meio de dizer para Stefany que ela não tem mais a mãe, o pai e o irmão. “Meu tio pediu pra passar o telefone pro meu namorado, James, e eles ficaram conversando. Eu sem entender, James no telefone e já pesquisando na internet encontra a notícia das mortes, mas sem os nomes”.

A família tira dinheiro “de onde não tinha” para que a menina possa embarcar no primeiro voo possível para Juazeiro do Norte. No caminho todo, Stefany prefere não acreditar: não é verdade, eles não morreram. Quando chegar, lhe dirão que estão vivos. Com alguns ferimentos, no hospital, mas estaria tudo bem.

Quando chegou, viu caixões.

Legenda: Claudineide, Gustavo e Cícero são agora saudades no cotidiano de Stefany
Foto: Arquivo Pessoal

 

A tormenta dos dias

“Tá sendo muito difícil. Tô pedindo a Deus, e a eles, pra me mandarem força. Eles eram tudo pra mim. Meu irmão era meu melhor amigo. Eu falava tudo com ele, e não poder ajudar nesse momento... Tudo me lembra eles, e eu ainda não sei como estou conseguindo viver. Ninguém nunca veio me procurar, saber se estou precisando de alguma coisa. Nada. Tenho meus tios, minha avó, e passo o dia indo na casa de um, de outro, pra não ficar o tempo todo sozinha em casa. Só fico tentando dia após dia viver. James, o meu namorado, é quem tá sendo meu grande apoio nisso tudo”.

Legenda: "Meu irmão era meu melhor amigo. Eu falava tudo com ele", diz Stefany
Foto: Arquivo Pessoal

E segue: “quando chegou o aniversário da minha mãe, foi muito difícil. Tinha uma flor que ela queria muito, e eu tinha juntado dinheiro pra comprar essa flor, estava ansiosa pra comprar e mostrar pra ela”.

Desde o massacre em Milagres, Cláudia, a tia, tenta conversar diariamente pelo celular. As duas dividem os lutos: uma, perdeu marido e filho, a outra, perdeu pai, mãe e irmão. Quando criança, Stefany chamava Cláudia de ‘mãe’, pela convivência que era diária quando as duas famílias eram vizinhas em São Paulo. A tia sente, ainda hoje, a responsabilidade de representar a irmã, também pensando que esta possa estar cuidando de seu filho em outra dimensão.

Recorre à mensagem do WhatsApp para ver a última mensagem da mãe e tentar retomar dali o diálogo, como se nada tivesse mudado após os dias.

7 de dezembro, 10:01

— Muié, bom dia. Já acordou?

11:06

— Mãe, cadê você?

 

9 de dezembro, 8:43

Eu te amo muito.

Ao final de dezembro, uma moça chegou no portão de casa e ofereceu um gatinho a Stefany, que aceitou e batizou de Agnes. Dois meses depois, veio o Kilua, outro gatinho. Mais recente, adotou um cachorro. Batizaram de ‘Shaquille O’Neal’, ou somente ‘Shaq’

“Agnes, Kilua, Shaq e meu namorado James são hoje minha nova família”.

Legenda: James, o cachorrinho Shaq e os gatos Agnes e Kilua são a nova família de Stefany
Foto: Arquivo Pessoal

Mas o silêncio diante das investigações sobre os crimes em Milagres vai e volta nos dias da órfã. “Nós queremos Justiça. Não vai trazer eles de volta, mas a gente merece saber a verdade, e que ela seja dita e as medidas necessárias sejam feitas, porque eu não quero que ninguém mais tenha que passar por algo como estou passando”.

Os destaques das últimas 24h resumidos em até 8 minutos de leitura.
Assuntos Relacionados