Jogos de azar e loterias não autorizadas funcionam à revelia da Lei

Todo ano a Polícia interdita jogos clandestinos e autua pessoas por contravenção penal. Via de regra, ninguém fica preso e os estabelecimentos voltam a funcionar, alimentando o vício dos jogadores

Escrito por Redação , segurança@verdesmares.com.br

O silêncio de quem dorme nos colchões espalhados pela Praça do Ferreira, Centro de Fortaleza, é cortado pelos gritos de Cristina, falando com o tom de voz duas vezes mais forte que o do pai, numa esquina. Ela em cólera e ele em tristeza e vergonha:

- O senhor disse que não vinha mais. E, agora, todo dia é isso.

- Minha filha, mas eu não tô fazendo mal a ninguém.

- O senhor é que pensa. Uma hora dessa aqui, eu com risco de ser assaltada, porque o senhor vem.

Naquela noite, Antônio tinha perdido R$ 2 mil, 70% de sua aposentadoria de servidor público estadual, um dia após recebê-la. A filha percebeu, depois, que o "assaltado" foi ele. Estava em uma das dezenas de casas de bingos clandestinos que funcionam em Fortaleza, sobretudo, na madrugada. Antonio já estava jogando desde o início da tarde. Almoçou e disse "vou ali".

Em casa, a esposa Isabel ouve e se entreolha com Cristina. "Só pode fingir que não sabe que a gente sabe". Porque "ali" só tem um destino. Pelo menos, nos últimos 20 anos, Antônio já perdeu um carro, muitos salários de aposentadoria e um filho para o vício. Ele, no jogo; o filho, no álcool. Bebia dia e noite desde que se separou da mulher. Casou-se com a garrafa, e numa tarde ensolarada de abril de 2010 não enxergou o caminhão parado na sua frente e entrou debaixo com moto e tudo.

O pai já jogava, mas desde o luto só joga e perde, mesmo quando ganha. Se completa uma cartela, grita 'bingo!' e recebe R$ 700 mas não sai sem que tenha deixado todo o dinheiro novamente na casa de azar, que não para. O locutor anuncia mais de 200 sorteios em um só dia, com prêmios entre R$ 700 e R$ 1.500. Os apostadores ficam de olhos vidrados na tela do computador, que marca automaticamente as cartelas adquiridas. Ganha quem completar uma linha ou o "jogo mais forte" de uma cartela que contém vários. Mas é preciso gritar "bingo", para o locutor parar e depois dar início à próxima partida, cada uma com a média de dois minutos de duração.

- Desculpe, minha filha. O papai não queria que você viesse.

- Mas pai, esse pessoal só quer o seu dinheiro. Lembra que, uma vez, deixou pendurado e eles foram bater lá em casa?

- Mas eu só tô fazendo mal a mim.

- Tá não, pai. Mãe não dorme enquanto o senhor não chega. Fica com o medo de, Deus o livre, acontecer alguma coisa.

Acontecer de novo. Isabel não quer perder também o marido para o vício, e nem uma notícia que "chega de repente". Já não basta despejar a aposentadoria quase toda no cassino. A sorte é que não paga aluguel, mas Cristina já pediu que, quando recebesse a aposentadoria, o pai tirasse logo o do condomínio e da luz. Juntando os dois dá em torno de R$ 600.

Dinheiro perdido

"Eu não jogo mais pra ganhar. Já tive de fazer quase R$ 3 mil numa noite e deixar todinho na casa". A casa é o "Savanah Bingo", tão famoso e clandestino que por sete anos funcionou sob liminar, medida controversa e considerada inconstitucional por juristas.

O documento evitava a batida policial. Mas nada muito diferente de antes, quando também era objeto de mandado. Após deflagrada a operação e protocolados os autos, em dias voltava a funcionar. O bingo arrecada mais de R$ 200 mil por dia (numa das estimativas mais pessimistas, segundo ex-funcionário da casa) e não paga tributos sobre a movimentação financeira. As apostas das cartelas são feitas em dinheiro e sem recibo.

Dois quarteirões à frente, no terceiro pavimento de um prédio antigo, funciona o Barro Preto, também de forma clandestina. Já foi fechado diversas vezes pela Polícia Civil, e reaberto no mesmo tanto.

"É uma esculhambação, você tem bingo e caça-níquel por toda a cidade, a Polícia fecha e eles reabrem", afirma um delegado de Polícia Civil, que já fez diversas operações contra crimes de contravenção e vê a Justiça morosa. O artigo 50 da Lei de Contravenções Penais diz que estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível é contravenção penal sujeita à pena de prisão simples, de três meses a um ano, mais multa.

"Ninguém fica preso com uma pena dessa. Por conta da legislação branda, existe muita reincidência", afirma Paulo Henrique, chefe da Delegacia Regional de Investigação e Combate ao Crime Organizado (DRCor), da Polícia Federal. Ele reconhece a possibilidade de os jogos clandestinos serem porta de entrada para crimes associados, como a lavagem de dinheiro.

Em tempos de tecnologia

O Delegado de Polícia Civil Régis Pimentel, de Paracuru, explica que esse tipo de contravenção é dividido em jogo de azar, quando depende exclusivamente da sorte; jogo do bicho e loteria não autorizada. Esta última cresceu nos últimos anos e, graças à tecnologia e à dificuldade de flagrante, tornou-se um segmento bastante rentável.

A mitologia grega fala da Hidra de Lerna, um monstro com corpo de dragão e várias cabeças de serpente que habitava no pântano. Na tentativa de matá-lo, os homens cortavam-lhe as cabeças, mas a cada ação nasciam outras duas.

É como se operações realizadas pela Polícia Civil para a atividade ilícita de bingos e jogos só afetasse o tempo de reorganizar a clandestinidade. "Em alguns, é só o tempo de a Polícia sair eles reabrem no mesmo lugar. Quando não fazem isso, é só para evitar desdenhar do trabalho policial. Não parece o objetivo deles. Então reabrir em outro lugar e seguir respondendo na Justiça é mais compensador. Muitas vezes, as nossas operações só frustram um dia, apenas, de ganho dos operadores desses esquemas. É desanimador", explica um delegado de Polícia que em mais de dez anos atuou fechando cerca 50 estabelecimentos clandestinos de jogos e bingos na Região Metropolitana de Fortaleza.

Pediu para não ser identificado porque "outros colegas estão com esse abacaxi, então quem está de fora parece fácil criticar".

Tentação no 'zap'

Antônio já procurou ajuda para controlar a compulsão por jogo, até já participou de um grupo de Jogadores Anônimos, entidade que se organiza em diversos estados, mas que há quase uma década deixou de ter uma sede no Ceará.

"Eu tenho vontade de retornar, pois sei que outras pessoas passam pelo que mesmo que eu". Em tempos de WhatsApp, diz que ficou mais fácil cair na tentação.

"Meus amigos de jogo não vinham chamar porque minha família botava pra correr. Mas é só chegar o fim do mês que a mensagem no telefone apita". E a ansiedade de Antônio palpita.

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