Humanização no atendimento a infratores e o 'direito a reexistir'

O juiz titular da 5ª Vara da Infância e Juventude, Manuel Clístenes, estima que 90% dos jovens com quem ele teve contato direto voltaram a reincidir, antes mesmo de terminarem de cumprir a primeira medida socioeducativa

Escrito por Emanoela Campelo de Melo , emanoela.campelo@svm.com.br
Legenda: Após cumprir medidas de internação, adolescentes tentam mudar de vida
Foto: FOTO: EMANOELA CAMPELO DE MELO

Quando um jovem infrator termina de cumprir a medida socioeducativa e não volta a cometer atos infracionais, ele fica com a ficha limpa. É a chance do recomeço, de deixar o passado de infrações para trás. No último dia 29 de novembro, um grupo de 22 adolescentes foi contemplado com esta oportunidade, na 5ª Vara da Infância e Juventude, em Fortaleza: "se amanhã você for abordado na rua e um policial perguntar se você tem passagens, saiba que você não tem", sugere aos jovens o juiz Manuel Clístenes, titular da Vara.

O grupo é minoria em meio a milhares de jovens apreendidos por ano, no Ceará. Conforme estudo feito na 5ª Vara, quase 90% dos adolescentes infratores nem sequer chegam a finalizar a medida e já voltam a reincidir, sendo sentenciados com uma nova medida socioeducativa. A defensora pública Érica Albuquerque lamenta que os índices de reincidência em meio aberto ainda sejam elevados e pontua que "o adolescente que está ali já teve muitos direitos violados. Ainda hoje, há casos que o adolescente passa a ter o direito de existir depois que ele comete o ato infracional".

Sob olhares dos representantes do Poder Judiciário, os jovens de 'ficha limpa' escutam sobre a nova chance: "vocês estão tendo uma oportunidade de reiniciar, de começar de novo. Espero que saibam aproveitar isto", acrescentou a defensora. Na audiência, são as mães quem mais falam sobre eles. A fala dos adolescentes é mínima. Um deles, quando sai da sala se vira para o policial militar e diz: "até a próxima", como se desacreditasse em um futuro diferente daquilo para si mesmo.

Persistir

As mães são as que não demonstram desistir deles. Uma delas diz ao juiz. "Ele já melhorou bastante. Agora chega em casa cedo e vai para a escola. Antes ele mentia que ia, e faltava. Agora até dorme em casa com a gente". Outra defende que o tempo que o filho passou cumprindo a liberdade assistida foi positivo: "matriculei ele de volta ao colégio. Próximo ano, vai voltar a estudar, se Deus quiser. Agora está trabalhando de servente. Prometo que não vai mais se misturar com as más companhias, viu, doutor".

A pedagoga do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Maria de Lourdes Macário, acompanhou parte do grupo de 22 jovens durante seis meses de liberdade assistida. Ela destaca acreditar nas reviravoltas das vidas deles e fala sobre a importância dos cursos profissionalizantes para abrir portas.

"Dentro deles, tem um potencial do bem que precisam colocar para fora. Podem dar exemplo para a sociedade e para o Governo do Estado. Cada um é capaz. Esse período que passamos com eles, nós dizíamos que o sentido da medida era colocar tudo isso em prática. Acreditamos que eles viraram essa página da violência", disse a pedagoga.

Justiça restaurativa

Conforme estatísticas da Defensoria Pública do Ceará, o Núcleo de Atendimento ao Jovem e Adolescente em Conflito com a Lei (Nuaja) registrou, em 2017, 3.690 atendimentos. Em 2018, o número reduziu para 3.512 e, neste ano, até o fim de novembro, eram 2.980 registros. A queda dos dados acompanha a redução de adolescentes capturados e que cumpriram medidas socioeducativas neste mesmo período. Mesmo com a redução, o volume de adolescentes em conflito com a lei fez com que a Defensoria promovesse o Centro de Justiça Restaurativa como alternativa ao processo judiciário.

Érica Albuquerque explica que, na prática, há envolvimento do adolescente ofensor, da vítima, da comunidade e de um facilitador. Neste processo, há o cuidado com as necessidades dos envolvidos em prol de buscar a reparação dos danos das vítimas, algo que, na maioria das vezes, é emocional.

A Defensoria afirma que quase 80% das práticas realizadas no Centro resultaram em acordo. Os casos chegam a partir de encaminhamento da 5ª Vara da Infância e Juventude de Fortaleza. De abril de 2018 até abril deste ano, foram 22 processos que resultaram em práticas restaurativas, entre os quais 18 tiveram como desfecho acordos que foram cumpridos.

"A prática restaurativa é uma forma de responsabilizar o adolescente de uma forma educacional. A gente acredita que um atendimento humanizado faz toda a diferença, mas o volume é intenso. Muitas vezes, o adolescente chega com o rótulo do adolescente que está em conflito com a lei, que violou o direito de alguém. Mas antes de ele violar o direito, na maioria das histórias, a gente verifica que existiram diversas violações em relação ao direito daquele adolescente. Então, para que ele seja ressocializado, para que ele não volte a cometer atos infracionais, é preciso que neste momento as instituições ajam de forma a assegurar direito e garantias daquele adolescente", diz a defensora pública.

Visualizar e analisar um adolescente infrator como alguém que também precisa ter seus direitos respeitados ainda é desafiador para a sociedade e poder público. Érica Albuquerque defende: "para que a pessoa tenha sentimento de respeito pelos direitos dos outros ela precisa, na sua formação, ter seus direitos respeitados. A partir do momento que a Justiça retribui a dor somente com mais dor, ela não alcança efetividade", finaliza.

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