Tradição do crochê une gerações

No Natal, o artesanato se faz luz e reveste o presépio de madeira e barro, na praça central de Curral Grande

Escrito por Theyse Viana - Repórter ,
Legenda: O presépio vestido de crochê é uma novidade do ano de 2017
Foto: Fotos: Helene Santos

São Gonçalo do Amarante. "A gente identifica o lugar da gente na arte". A constatação, declaração de amor repleta de orgulho e propriedade em cada letra, é da artesã Marta Souza, 54, mas poderia ser de qualquer um dos cerca de 300 habitantes do distrito de Curral Grande, em São Gonçalo do Amarante, a 55Km de Fortaleza. Na autointitulada Cidade do Crochê - assim mesmo, com respeito de letra maiúscula -, o entrelaçar das linhas veste desde o garrafão de água na cozinha aos troncos das árvores nas ruas, marcando a tradição centenária em cada canto do pequeno território. No Natal, o artesanato se faz luz e traje de Maria, José, o Menino Jesus e os Três Reis Magos erguidos no presépio de madeira e barro, protagonista da praça central durante o mês de dezembro.

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Ao contrário das "roupas" que as árvores do distrito trajam, todo ano, durante os festejos natalinos, a estrutura do presépio foi montada em Curral Grande pela primeira vez neste ano. As roupas das esculturas de barro importadas de Fortaleza - que, além dos personagens do nascimento de Cristo, reproduzem camelo, vaca, galo e outros vários elementos do curral onde Jesus nasceu - ficaram por conta das artesãs-estilistas, "depois de muita pesquisa", como garante Marta, uma das cofundadoras da Associação de Artesãos Art Fio.

Composta por cerca de 35 pares de mãos, a associação foi fundada em 2004 para fortalecer uma cultura que já possuía raízes centenárias na localidade. "É uma arte hereditária, e muita gente ainda não conhece de verdade. A gente pensa que crochê é coisa de dona de casa, né? Mas é arte, é a nossa identidade", categoriza Marta Souza, que herdou da avó, "desde criança", a destreza da dança entre as linhas e a agulha de gancho.

É por meio do crochê, aliás, que se faz a costura entre as gerações nascidas no distrito tão pequeno, ao passo que tão gigante em tradição. Na família da "especialista em florais" Antônia de Maria da Silva, 45, por exemplo, todos os integrantes - o marido e as três filhas, de 17, 21 e 22 anos de idade - se dedicam a perpetuar a arte-identidade de Curral Grande. "Crochê é um negócio que exige paciência e dom. Tem que ter dom. Pra mim, é bom demais fazer isso. A gente vê as coisas prontas e se sente muito orgulhosa", confessa, com timidez, apontando especialmente para um dos Reis Magos do presépio natalino, e ressaltando também a importância econômica da produção das peças.

As toalhas, colchas de cama, caminhos de mesa, tapetes, almofadas e os outros diversos e incontáveis itens produzidos pelas artesãs cearenses rompem as fronteiras de Curral e viajam a outras cidades brasileiras - pousando, inclusive, na casa da cantora Marisa Monte, no Rio de Janeiro. "Ela é nossa cliente, viu? Tá pensando o quê?! Já faz uns três anos que ela sempre encomenda peças à gente. Em agosto agora, ela veio aqui, almoçou e fez crochê com a gente na minha casa!", envaidece-se Marta, respaldada pelos risos orgulhosos das colegas de arte.

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Composta por cerca de 35 pares de mãos, a associação foi fundada em 2004 para fortalecer uma cultura que já possuía raízes centenárias na localidade

Raiz

Um conjunto de "20 e poucos" caminhos de mesa rústicos e o pufe manufaturado especialmente pela cofundadora da Art Fio foram ainda mais longe, respectivamente para Itália e França. Apesar disso, a voluntária Danila Mendes, 36 - que auxilia as artesãs na costura das peças que revestem as árvores - ainda tem um sonho semeado em terras locais.

"Queria muito levar nossa arte para a Praça do Ferreira, em Fortaleza. É a principal, né?", justifica, reforçando ainda a força das raízes que a fincam no solo-mãe. "Antes, ninguém sabia nem onde era aqui. Agora, todo mundo fala que viu nosso crochê no meio do mundo. A gente agora tem orgulho de dizer que mora em Curral Grande", conclui Danila. O sentimento de pertença ao lugar - e de entrega à arte - é ainda mais engrandecido nas mãos inquietas de quem nasceu "na terra do bordado", como faz questão de revelar a artesã Maria José Coelho, 67.

Natural de Itapajé, e adotada por Curral Grande, Mazé é uma das veteranas entre as mulheres que tecem a cultura do distrito, tendo o artesanato como ato tão imbricado quanto inseparável. "Como é que eu vou olhar pra televisão com as mãos paradas? E não só em casa, já é comum a gente ficar aqui na praça à noite, todo mundo, conversando e fazendo crochê. As crianças vão se interessando também, e pronto, a arte continua", simplifica.