Tradição das carpideiras nos velórios do sertão

Escrito por Redação ,
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Resgatar a memória do sertão é falar do trabalho das carpideiras, pessoas que rezavam e choravam pelos mortos

São Gonçalo do Amarante. Dor, choro, lamentação. Pessoas vivendo um momento que preferiam nunca saber como é. Ao redor de um caixão, muitas lágrimas derramadas pela família que perde um ente querido. E, para completar a cena, o grupo que canta benditos como forma de transformar o último momento em situação bem mais sofrida. Em pé ou sentados no chão, homens e mulheres eram chamados a passar a noite inteira velando um morto. Com cânticos piedosos, o intuito era fazer com que todos os presentes ao velório, chorassem. Além disso, era como se, com o ato, auxiliassem os mortos a entrar no reino do céu.

Essa era a função das carpideiras cearenses que, antigamente, eram figuras comuns no Interior do Estado. Embora, atualmente, a função já não seja mais exercida como antigamente, as “cantadeiras de inselências”, como se auto-conheciam, fazem parte da história dos antepassados nordestinos.

Uma delas é Rosalva da Conceição Lima, mais conhecida como dona Rosinha que, até hoje, trabalha em Juazeiro do Norte, no Cariri, moradora da Rua do Horto. São muitas histórias nos seus 87 anos, pois acompanha velórios desde os 12 anos. O aviso da encomenda de alma vem por uma voz misteriosa. Tanto pode ser homem quanto mulher. Sua atividade é tão merecedora de atenção que, de julho de 2003 a junho de 2004, foi tema de um projeto de pesquisa da Universidade de Fortaleza (Unifor), na Capital cearense, que estudou a história das carpideiras.

Para quem foi uma delas, não tem como esquecer dos “bons tempos”. Um exemplo foi o grupo encontrado no município de São Gonçalo do Amarante, localizado a 59 quilômetros de Fortaleza, e Paracuru, a 87 quilômetros da Capital.

“Cantávamos a noite toda para atrair as pessoas. Hoje já não tem mais. É triste. As pessoas vão para um velório, passam um pouquinho de tempo e vão embora. Antes não era assim. Ficávamos até que o morto fosse enterrado”, contou Cristina Conceição da Silva, 42 anos, moradora da comunidade de Marco, em Paracuru.

A agricultora Maria Gomes de Oliveira, mais conhecida como Maria Silvino, vizinha de Cristina, 77 anos, também lembra “do tempo bom que não volta mais” e confirma as palavras da “cumade”. “A gente passava a noite toda e o velório era cheio de gente e hoje não”, contou ela.

De acordo com Maria Silvino, o trabalho de cantar as inselências era para que “as pessoas ficassem juntas”. Era um momento de reunir até quem não era da família. “Hoje ninguém mais chora, parece que não tem sentimento”, contou a antiga carpideira.

E para lembrar que “cantar” não era só função das mulheres, o comerciante e agricultor da comunidade de Sítio Cordeiro, em São Gonçalo do Amarante, José Júlio Pereira, conhecido por “Caçaco”, 63 anos, fez questão de ressaltar a memória daqueles tempos em que o morto era “honrado”.

Segundo ele, “a despedida da manhã é que fazia o caba chorar, porque as cantigas eram penosas. Hoje, o que se faz é rezar o terço e pronto. Não é como antigamente”, lamentou. Segundo afirma, o trabalho era para que “o espírito ficasse fortalecido para ir para o reino da salvação”.

Para que a nova geração possa ter conhecimento dessa antiga tradição, o conselheiro tutelar, integrante do Conselho Municipal de Defesa Social e presidente do Conselho Municipal do Idoso da cidade de São Gonçalo do Amarante, José Gildenor Barbosa, informou que o grupo sempre é chamado para fazer apresentações em datas especiais como, por exemplo, a festa de emancipação política do município.

“Os estudantes também os procuram para fazer trabalhos das escolas. Eles até participaram do Encontro Mestres do Mundo que aconteceu em Limoeiro do Norte”, salientou o conselheiro tutelar.

EM FAMÍLIA
Cantadores seguiam os passos dos pais

São Gonçalo do Amarante. Seguiram os passos dos pais. Quando indagados sobre como começaram a “tomar gosto” pelas inselências, Maria Silvino, Caçaco e Cristina, de Paracuru e São Gonçalo do Amarante, foram unânimes em afirmar que desde pequenos observavam os pais e os acompanhavam quando eles iam cantar nos velórios.

“Sabe como é, menino é curioso. Então, a gente curiava as cantigas. Me tornei rapaz e ia acompanhando. À noite tinha que ter o cântico e, assim, passava a noite toda no velório”, disse José Júlio (Caçaco).

Foi assim também com Maria Silvino. “Mamãe já cantava inselência e eu fui crescendo e começando a cantar e a rezar também”, contou. Outra que não fugiu à regra foi Cristina. “Acompanhava meus pais e fui aprendendo os cantos. Achava ruim quando tinha velório e não tinha inselência”, lembrou Cristina. “As coisas mais arcaicas desapareceram”.

Divertimento

Mas quem pensa que os velórios eram só locais de tristeza e choro se engana. Por incrível que pareça, a dor, muitas vezes, dava lugar para o divertimento. É isto mesmo. Os três cantadores de inselências contaram que alguns deles estavam acostumados a beber cachaça durante os benditos. “Com cachaça, o povo se animava”, disse Caçaco.

Outro detalhe eram os namoros que, às vezes, iniciavam nos velórios. “A gente ia para a sentinela (velório), mas não namorava não, respeitava”, contou José Júlio, confessando que sua esposa, ele conheceu em um dos tantos velórios do qual participou.

Quantidade

Os três disseram que não têm como saber em quantos velórios tiveram a função de carpideiras só que “foram muitos”. Afinal, “toda pessoa que morria nessa redondeza vinham chamar nós”, comentou Maria Silvino. Fizeram questão de ressaltar que não recebiam nada em troca, faziam como uma forma de “obrigação, de fazer visita”.

E, nestes tantos anos, não tem como não ter histórias curiosas ou engraçadas, como lembram. “Uma vez teve uma briga em um velório. Um bebo quis invadir o local onde estávamos cantando e foi uma confusão. As pessoas correram, até eu levei pancada”, relembrou rindo Maria Silvino.

Evelane Barros
Repórter