Santuários no interior guardam símbolos de graças alcançadas

Os ex-votos são oferendas feitas aos santos de particular devoção cujo significado conota uma prece atendida. Juazeiro do Norte, Canindé e Cariús são algumas das cidades que possuem esses locais considerados sagrados

Escrito por regiao@verdesmares.com.br , Antonio Rodrigues, Alex Pimentel e Honório Barbosa
Foto: Antonio Rodrigues

Juazeiro do Norte e Canindé são dois polos de romaria no interior do Ceará. A fé popular em Padre Cícero arrasta multidões ao Cariri cearense. O mesmo ocorre com a devoção a São Francisco de Assis nos Sertões de Canindé. Um dos locais mais visitados nessas cidades são as salas de ex-votos. Elas refletem as graças alcançadas pelos devotos e reforçam a fé sertaneja.

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Juazeiro hoje é notável. A fé moveu a economia, e a cidade se desenvolveu. Mas nem sempre foi assim. Tudo começou em 1886, quando uma hóstia teria supostamente se transformado em sangue na boca da beata Maria de Araújo, durante celebração na Basílica de Nossa Senhora das Dores presidida pelo Padre Cícero. Por isso, o vilarejo, então ligado ao Crato, se tornou alvo das primeiras romarias que veneravam os lenços sujos, frutos do milagre. Juazeiro do Norte foi crescendo em torno da imagem do Padre Cícero e, por causa dele, diversos pontos da cidade se tornaram lugares de fé. O mais conhecido deles - cartão-postal do Município de 270 mil habitantes - é a Colina do Horto, onde está a imagem do 'Padim'.

No seu entorno há salas de ex-votos com milhares de peças, fotos e inscrições. "Aqui é a expressão da fé popular, das graças alcançadas", disse o padre José Moreira que acompanhava um grupo de peregrinos oriundos de Alagoas. "Se tem tantos ex-votos assim é porque muitos ficaram curados e aqui vêm pagar suas promessas". As salas das peças integram o Museu Vivo do Padre Cícero, que recebe, diariamente, incontáveis itens como fotografias, esculturas e camisas, frutos de graças alcançadas. Em 1999, dona Maria das Graças, romeira de Atalaia (AL), deixou um joelho de madeira, pedindo ao santo popular que seu filho, o atacante Aloisio (ex-São Paulo, Paris Saint-Germain, Flamengo), se recuperasse de uma lesão no joelho. Na época, o jogador atuava pelo Sant-Étienne, na França, e rompeu o ligamento cruzado. A previsão para o retorno era de oito meses.

"Em cinco meses, já estava atuando", lembra o atleta, já aposentado. Após o sucesso, sua mãe retornou com uma camisa do filho, terceiro uniforme de clube francês, e uma pequena nota escrita anexada dizendo: "Obrigado meu padrinho Cícero pelas bênçãos e pelas graças recebidas".

O caso de Aloisio é só mais um dentre os incontáveis ex-votos encontrados na Casa dos Milagres, no Largo da Capela do Socorro, e na Casa Museu, onde morou o Padre Cícero, na Rua São José. Em todos os locais, é possível encontrar cabeças, pernas e braços de madeira que são vendidos para atender à demanda romeira. Qualquer peça é comercializada pelo valor de R$ 5.

Já em Santana do Cariri, a devoção é para Benigna Cardoso da Silva, aclamada como a "Heroína da Castidade". Benigna já teve sua beatificação aprovada na Comissão dos Teólogos da Congregação para as Causas dos Santos, no Vaticano, depois de cinco anos de estudos sobre sua história e devoção. Agora, seu processo está sob avaliação da Comissão dos Cardeais para, em seguida, passar pela aprovação papal.

Nomeada "Serva de Deus" pela Igreja Católica, em 2013, a menina foi brutalmente morta aos 13 anos de idade, no atual distrito de Inhaúmas, no ano de 1941. Os mais antigos contam que ela foi morta por seu vizinho, que tentou forçá-la a ter relações sexuais com ele. A sua luta por manter a castidade, pela qual deu a vida, virou sinônimo de fé e, todo dia 25 de outubro, data em que foi morta, milhares de pessoas visitam o Município em sua devoção. Durante a Romaria, muitos costumes foram criados e já se tornaram tradição. Um deles é a busca de água no mesmo poço que Benigna tirava para levar para sua casa, antes de ser morta. Lá, dezenas de pessoas se amontoam com garrafas plásticas e baldes para levar um pouco do "líquido santo" para suas casas. Outro ritual, até agora, inexplicável, acontece no local exato em que a menina foi morta, onde está erguida uma cruz. Os romeiros fazem pedidos a Benigna, deixando duas pedrinhas sobre o monumento e levando duas para casa. No ano seguinte, trazem o objeto de volta e realizam um novo desejo. "Vim pedir a saúde para minha filha. Ela sente dores de cabeça, desmaios", explica Luzanira Alves, que visitou a Romaria pela primeira vez, em 2018.

Legenda: Os ex-votos representam as graças alcançadas pelos devotos
Foto: Antonio Rodrigues

São Francisco

Em Canindé, onde está localizado o maior santuário franciscano das Américas, o hábito do agradecimento das graças alcançadas com ex-votos levou os padres do Santuário Paróquia de São Francisco das Chagas a erguerem a Casa dos Milagres, onde anualmente milhares de devotos depositam as suas provas materiais de fé. Quem passa por lá deixa fotografias, cabelos, pedaços de madeira moldados conforme a parte do corpo que foi curada de alguma doença, vestes, maquetes de casas, de carros, entre outros objetos.

Quem dá essa explicação é a dona de casa Maria Aparecida Barbosa. Ela aprendeu a história com os franciscanos. As peças ficavam espalhadas pelos cantos da igreja matriz até pouco antes do início da década de 1990. Na época, acompanhou a mãe, pela primeira vez, com uma orelha talhada em madeira. "Ela teve uma inflamação no ouvido e médico nenhum dava jeito. Rogou a São Francisco, foi atendida e agradeceu", explicou.

De acordo com os padres administradores do Santuário Paróquia, a Casa é tida como a materialização da fé. A visita é considerada uma obrigação pelos fiéis. Além do ciclo das romarias, muitos visitam o lugar em outros períodos. Não se sabe ao certo quantos ex-votos o espaço guarda, mas em 1988 um frei chegou a contar mais de quatro mil peças, sendo a maioria esculturas de braços, pernas e pés. Há uma justificativa para tantos símbolos de membros inferiores. São Francisco também é protetor dos motociclistas. "Escapei da morte e foi Deus quem me salvou quando fui atingido por um caminhão quando trabalhava na minha moto. Quando saí do coma, me deparei com o medo de perder o pé. No hospital, chegaram a dar como solução a amputação. Me peguei com São Francisco e prometi uma graça de ex-voto. Foi a minha mãe quem me aconselhou a mandar fazer um pé, de madeira e depositar na casa dos milagres. Se tem tanto pé assim é porque o santo é forte", confessou o mototaxista André Ribeiro, de 36 anos, natural de Fortaleza.

Memória

A igreja dedicada a Bom Jesus das Dores, na localidade de Caipu, zona rural de Cariús, no centro-sul cearense, guarda uma história de romaria e de relatos de milagres. A sala dos ex-votos é representativa da memória do povo católico que durante décadas frequentou o templo religioso. "Aqui, é um espaço de fé e de orações, com um histórico de graças alcançadas", observou o monsenhor Afonso Queiroga, da diocese de Iguatu. "No passado, havia romarias, uma festa intensa, segundo contam os moradores antigos". O templo religioso foi construído há 239 anos.

São mais de dois séculos de devoção a Jesus Cristo, com o título de Bom Jesus das Dores. A festa religiosa transcorre no mês de novembro, no penúltimo domingo, quando se celebra Cristo Rei, mas a partir de pedidos de moradores e de estudo em livros de tombo, o padre Iranildo Reis vai modificar a data de celebração da festa para 31 de outubro. A ideia é modificar a data já a partir deste ano. A capela pertence à paróquia de Nossa Senhora Auxiliadora, em Cariús.

"Há muitos relatos de milagres", disse a aposentada Francisca Oliveira. O advogado Mário Leal Sobrinho lembra que há mais de 50 anos a movimentação de romeiros era intensa. "Aqui, era como Canindé, gente chegando de todos os cantos", disse. "Eu mesmo presenciei missões com Frei Damião". A professora aposentada, Diva Targino, 106 anos, lúcida, confirma a história das romarias. "Vinha gente de todos os lugares, muitos pagavam promessas, faziam preces", disse. Tradição e fé mantêm, após décadas, a religiosidade do local.

A religiosidade fervorosa dos cearenses fez surgir locais sagrados no interior do Estado que abrigam peças cuja simbologia remontam a graças e milagres alcançados. São os chamados ex-votos

 

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