Projetos no interior estimulam a força transformadora da educação

A psicopedagogia tem mostrado a importância do valor humano na formação de jovens e crianças. Com resultados positivos, os métodos modernos unem sentimentos e empoderamento às técnicas tradicionais de educação

Escrito por André Costa e Antonio Rodrigues , regiao@verdesmares.com.br
Legenda: O Bemc foi criado no ano de 2013 e hoje já conta com mais de mil exemplares de livros

Ao ler pela primeira vez o livro “Senhora”, de José de Alencar, ainda no Ensino Médio, a professora Ana Paula Ferreira Lima, 32, transformou sua vida. O romance do escritor cearense despertara a paixão pela literatura. Ao fim da leitura daquele que havia sido um dos últimos romances publicados por Alencar, três anos antes da sua morte, a jovem moradora de Nova Olinda, uma pequena cidade da região do Cariri, decidiu que seu futuro seria dentro das salas de aula. 

Objetivo traçado, meta alcançada. Filha de agricultores e crescida no distrito de Triunfo, na zona rural de Nova Olinda, Ana Paula alcançou seu sonho em 2012 ao se graduar em Letras pela Universidade Regional do Cariri (Urca). “Saberes têm que ser compartilhados”, pontuou a professora. Inquieta, foi além. Os limites geométricos impostos pelas paredes da sala de aula não estagnaram seu desejo incessante de alçar novos voos. Apaixonada por leitura, ela identificou que sua comunidade tinha pouco ou nenhum acesso aos livros. Decidiu, então, por conta própria, transformar esse cenário. 

Na palma da mão 

O paulistano Monteiro Lobato, um dos mais influentes escritores brasileiros, ao demonstrar o quão importante é o hábito da leitura disse que “um país se faz com homens e livros”. Ana Paula não só reconhece essa importância como decidiu colocá-la ao alcance de todas as crianças e jovens da comunidade. Criar uma biblioteca em sua residência foi a solução encontrada pela professora para “colocar o mundo ao alcance” de quase 300 crianças da localidade de Triunfo. 

Com o primeiro salário recebido nos idos de 2013, comprou alguns livros e os juntou aos títulos que já tinha em casa. Nascia ali o projeto Biblioteca em Minha Casa (Bemc). De uma estante com apenas 20 títulos, o projeto atingiu a expressiva marca de mil livros neste ano. 

Assim que seu irmão mais velho oficializou matrimônio e saiu de casa, Paula começou a empilhar livros no quarto dele, a princípio, na cama. A vacância em um dos cômodos de sua casa era o passaporte que o projeto precisava para decolar. 

Com a divulgação do trabalho, a Bemc angariou doações de livros. A cama já não mais acolhia a grande quantidade de títulos. Desta forma, ela decidiu investir recursos próprios e transformou o quarto do irmão em uma biblioteca comunitária. O sonho ganhava forma e cor. As paredes antes pintadas uniformemente com tinta azul, ganharam vida. Frases, poemas, fotos e muitos livros passaram a compor o ambiente visitado por dezenas de pessoas da região. 

Hoje, a biblioteca de Paula acolhe crianças de todas as idades. Ela mesma acompanha atentamente os jovens durante o processo de leitura. Os mais pequenos também participam de atividades lúdicas, como oficinas de desenho e pintura. 

Pedro Ícaro Brandão, de apenas cinco anos, se apaixonou por “Alice no País das Maravilhas”, em seu formato “pop-up”, que reproduz o cenário dos desenhos animados. O olhar atento e curioso denuncia o interesse depositado no clássico de Charles Lutwidge Dodgson. “Isso é o mais gratificante para mim. Ver criancinhas tão novas pegando o gosto pela leitura e servindo de exemplo para os adolescentes e até para os pais é o que mais me motiva e alegra. É algo que não possui preço”, ressalta ela. 

A vida da professora parece ser alicerçada em sonhar, realizar e depois sonhar novamente. Predestinada em “transmitir o saber”, a professora, que concluiu pós-graduação em Psicologia Aplicada à Educação, iniciou no ano passado o curso de Pedagogia. O objetivo, segundo conta, é se aprimorar no trabalho com as crianças. “Estou amando”, pontua. Sua luta é tornar os livros mais atraentes para as crianças. E até agora, na batalha em prol da educação, ela tem logrado bastante êxito. 

Ao ver o espaço da biblioteca repleto de crianças, Paula se mostra encantada e se diz realizada. Para ela, a paixão destas crianças pela leitura quebra um tabu que paira sobre o livro. “A escola hoje ainda vê o livro como obrigação do aluno para fazer avaliação e isso acaba afastando e se tornando chato, porque ele vai ser cobrado sobre isso”, acredita.

Sementes plantadas
Além de incentivar crianças, jovens e adolescentes à leitura, o Bemc atuou como importante ferramenta de disseminação no interior do Estado. Foi inspirado no projeto de Ana Paula, que a professora aposentada Terezinha Pereira de Jesus criou uma biblioteca itinerante no distrito de Araporanga, também na região do Cariri.

Ela avalia que o acesso ao livro, literatura, arte e cultura em comunidades interioranas ainda é deficitário. “Durante minha trajetória de formação acadêmica e profissional, sempre idealizei concretizar ações que viessem a favor desta demanda de crescimento humano e social desta comunidade”, explica. Em 2016, criou a biblioteca itinerante, para atender alunos do ensino fundamental. O projeto já conta com mais de mil livros. “A biblioteca recebe em sua sede, crianças, jovens e adultos no empréstimo de livros, rodas de leitura e contação de histórias. Estas mesmas ações acontecem nas sedes das escolas infantil e de ensino fundamental, nas praças e calçadas, como também nas residências de zonas rurais”.

Educação Ambiental

A trajetória de vida do chefe de cozinha Leirton Alves Duarte, 30, se confunde com o percurso trilhado por Ana Paula Lima. Ambos nasceram em família humilde, cresceram na zona rural e encontraram na educação a chave para transformar vidas. Se Paula desenvolve a prática da leitura, Leirton incentiva a educação ambiental. Ele criou no fim do ano passado o projeto “Brincando com Arte”, em Santana do Cariri. São mais de 130 crianças e adolescentes envolvidos no trabalho que resgata objetos, como garrafas PET, tampinhas plásticas, latinhas de cerveja e refrigerante, e transforma em brinquedos, quadros e luminárias, por exemplo. 

Para manter o projeto, com sede numa pequena casa alugada no Centro de Santana do Cariri, Leirton vende coxinhas, ao preço de R$ 1, e panquecas, por R$ 3. Ele conta também com o apoio de muitas mães que o ajudam a vender os lanches. Joana D'arc Carlos dos Santos, mãe de três crianças assistidas pelo projeto, é uma delas. “Eu acho ótimo. Eles têm melhorado na escola”, conta a dona de casa. 

Tamanho esforço empenhado para assegurar o “Brincando com Arte” ativo deve-se às marcas do seu passado. O trabalho social foi despertado em Leirton a partir das dificuldades de sua infância. Ele recorda que seu pai bebia muito. Chegou a expulsar sua família de casa. “A gente dormia na calçada”, lembra. “A gente passou muita fome”, reforça. Foi vendendo comida em ônibus que conseguiu concluir seu curso técnico em Cozinha no Instituto Centro de Ensino Tecnológico (Centec), em Crato. “A educação é a única alternativa”.

As pequenas mãos que criam materiais reciclados serão as mesmas que em breve vão folhear livros. Pelo menos é o que pretende Leirton. O sonho que fora realizado há seis anos por Ana Paula agora povoa os desejos do chefe de cozinha. “Tem alunos no quinto ano que não sabem nem ler”, lamenta. Para que o projeto germine, ele conta que já iniciou o pedido de doações. “Já tenho até em mente como quero a decoração. Eles montando tudo com parte reciclada”. 

Motivadores 

Paula, Terezinha e Leirton desenvolvem ações que beneficiam centenas de pessoas. Já Bárbara Matos e Wanusa Bezerra alcançaram um menor número de pessoas. Duas, especificamente. A quantidade, porém, é secundária, pois a educação atua como propulsora da transformação de vidas. 

Bárbara, de apenas 9 anos de idade, ficou sensibilizada ao descobrir que um vendedor de picolé não sabia ler ou escrever. “Como assim ele não sabe ler?”, ficou sem entender. A menina decidiu, então, ensinar ao vendedor Francisco Santana Filho, seis décadas mais velho. As “aulas” acontecem na porta da escola em que Bárbara estuda, no Centro do Crato, no Cariri. A criança diz que tenta fazer com que o vendedor escreva palavras simples, até chegar ao seu nome. “Eu coloco palavras como 'casa' pra ele cobrir, desenhos, letras pontilhadas. Aí ele vai tentando adivinhar as letras e cobrir os nomes”, explica a criança. “Ela chegou, deu essa forcinha. O importante é aprender, estou feliz. Vai ser bom demais escrever meu nome. Eu vou conseguir”, diz emocionado o idoso. Motivado ao já conseguir escrever seu nome, Zezinho, como é conhecido, conta que seu próximo objetivo é incentivar os amigos que também ainda não sabem ler ou escrever. 

Incentivo 

Incomodada com o desempenho escolar da filha, Maria Wanusa Bezerra Gomes buscou uma alternativa inovadora para incentivá-la. A dona de casa decorou o material escolar da criança de 10 anos com frases de motivação e carinho para ajudá-la a melhorar no colégio e tirar boas notas em Sobral, na região Norte do Ceará. “Você é capaz”, “você pode mudar o mundo”. “Me senti muito amada pela minha mãe”, comemora Lívia Gomes. O olhar cuidadoso da mãe gerou resultados. A filha, que está no quinto ano do ensino fundamental, conta que “ganhou motivação extra para se aplicar ainda mais nos estudos”. 

Distante dalí, Ana Paula – que já foi motivo de inspiração para o surgimento de outros tantos projetos –, dessa vez, seguiu o trajeto inverso. “Vi essa iniciativa e achei muito legal. É muito importante incentivar, mostrar que você crê na capacidade do outro”, disse a professora que passou a escrever frases motivacionais em lápis e canetas dos jovens que frequentam a Biblioteca em Minha Casa. 

Do Cariri aos EUA:
a saga do catador que foi parar em Harvard

Ciswal Santos sempre foi obstinado. De família humilde, ainda na adolescência teve que trabalhar para custear seus estudos. Aprovado na faculdade aos 16 anos, o jovem enxergou no lixo a oportunidade de superar as adversidades impostas pelo destino. 

“Quando eu saía da faculdade à noite, andava pelos bares de Juazeiro do Norte catando latinhas de cerveja para vender no quilo, isso eu ainda fardado”, lembra o agora professor, de 31 anos. 

Após concluir o ensino superior, o juazeirense foi além. A exemplo de Paula, Terezinha, Leirton, Bárbara e Wanusa, Ciswal também desenvolveu um projeto para contemplar pessoas carentes. 

Ele criou um sistema para gerar energia solar de forma sustentável com um aparelho que custa um pouco mais de um salário mínimo. 

O professor elaborou um projeto para desenvolver um equipamento que reduz em 70% o consumo de energia de uma residência de uma família de classe média, com quatro pessoas. 

A singularidade do estudo foi reconhecida no ano passado pela Universidade de Harvard, dos EUA, que ofertou uma bolsa de estudos ao ex-catador de latinhas. 
Neste ano, Ciswal foi nomeado embaixador dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).

Diante dos feitos, ele aconselha: “Nunca use pretexto que você não teve oportunidade de estudar na vida, pois para tudo sempre há um jeito. Talvez você chore, sofra, mas é possível ser um vencedor”.

Próximo ano ele será enviado à África para colocar em prática o projeto de água, energia e internet renováveis. 

Após este período, o professor viajará novamente aos Estados Unidos para implantar um laboratório de Tecnologia de Informação e Computação. Para Ciswal, tudo isso deve-se “exclusivamente à Educação”. 

Para ele, qualquer um pode ser a sua própria escola.