Pesca do muçum é alternativa para suprir carência do peixe tradicional

Escrito por Redação ,
Com a safra totalmente perdida, a prioridade de agricultores na zona rural é salvar os animais que restam

Ibaretama. Sem água, o peixe tradicional morre. A última espécime a sobreviver é o muçum, que serve de alimento para muitos agricultores. Um deles é Francisco Mendes do Nascimento. Diariamente, ele pega o seu anzol improvisado e se dirige para o açude do Cavalcante, próximo ao hospital municipal da cidade.

A pesca incomum vem amenizando as dificuldades Fotos: Waleska Santiago


Diante da presença da reportagem, Chico Nascimento, como é conhecido, tenta negar que esteja fisgando muçum para alimentar a família - dois filhos e a esposa. "Na verdade, estava apenas de passagem, para pegar a filha no colégio e parei aqui no açude para pescar por esporte", conta, por volta das 14 horas.

O agricultor revela que, no ano passado, nesse mesmo período, chegou a pescar cará de três quilos. Apontando para uma distância de aproximadamente cem metros, mostra onde a água estava. "É muito triste ver a situação atual. Esse é um local que é usado como área de lazer, principalmente nos feriados e no Carnaval. Hoje está assim, quase seco. O que resta é alguma água e muita lama. Daí resistir apenas o muçum", diz, já admitindo que "eventualmente" costuma pescá-lo para "quebrar um galho".

Chico frisa, ainda: "apesar do aperto por causa da seca, recebemos o Bolsa Família. O que praticamente desapareceu foi a oportunidade de conseguir uma ocupação para substituir a agricultura, pois perdemos todo o milho e o feijão que foram plantados no início do ano".

Embora não pareça, o Muçum é um peixe. Bem peculiar, mais se assemelha a uma cobra por seu formato - sem nadadeiras, peitorais e ventrais, desprovido de escamas e bem liso, o que motivou o adágio popular: "mais liso que muçum". Além disso, se adapta às águas pouco oxigenadas, daí sua facilidade em viver na lama, no caso do açude Cavalcante, resultante do que um dia foi um manancial hídrico.

José Roberto da Silva, vigia de uma escola pública localizada ao lado do açude particular, garante que Chico costuma pegar muçum ali todos os dias. "Ele não é o único. As pessoas têm um pouco de vergonha, pensam que é humilhante tirar o bicho da lama para levar para casa. Não tem nada a ver. Trata-se de uma comida deliciosa. Quem já provou torrado com cachaça não esquece nunca".

Prioridade

No retorno à propriedade do médio produtor Júlio Alves de Lima, 77 anos, localizada na zona rural de Ibaretama, o otimismo que ainda perdurava em abril foi trocado pelo pragmatismo da sobrevivência. Seu Júlio, na companhia dos três filhos, após três tentativas de emplacar uma boa safra de milho e feijão, desistiu.

"Foi tudo perdido. Só me resta fazer o que for possível para salvar os animais e evitar que eles sofram". Das 70 cabeças de gado que criava na propriedade de 120 hectares, trinta foram negociadas por um preço aquém do que seria conseguido em condições normais.

"Nos desfizemos de quase a metade para poder alimentar o restante. Mesmo assim, estou temeroso, pois não é possível suportar sem chuva por mais um ou dois meses", alerta seu Júlio.

Todos os dias, Nélio, filho mais velho, queima dez baldes de mandacaru para dar aos animais. Depois de triturado, o cactáceo é misturado à palha de arroz que foi adquirida em Morada Nova. "Compramos em outubro último 19 rolos de palha de arroz. Isso representa cerca de 12 mil quilos. Pela nossa estimativa, isso vai garantir comida para os bichos até o fim do ano".

Mesmo destacando que a estiagem é semelhante à registrada em 1958, Júlio Alves ressalta que a diferença fica por conta de medidas mitigadoras adotadas desde então, como os mecanismos sociais criados pelo governo ao longo do tempo, complementados por ações emergenciais. "Antes, tínhamos as frentes de serviços, que pagavam uma miséria aos agricultores. Hoje, os seguros dão um suporte muito bom às famílias. O problema é a falta d´água para os animais. Isso é que é preocupante", afirma.

Durante a nossa segunda visita à propriedade de seu Júlio, ao chegarmos, nos deparamos com uma cena insólita para os dias de hoje no sertão nordestino: ele manuseava um punhado de milho. Sobre o fato, foi logo desfazendo a nossa expectativa de que tivesse salvado alguma coisa da lavoura.

"Não é o que parece. Esse milho foi guardado em um tambor da safra de 2010. Estou fazendo a seleção para o plantio. Desisti de 2012, mas a vida não para e o próximo ano está em cima. É só ter um bom sinal de que vai chover com certa regularidade que corremos para a enxada para começar tudo novamente".

Josenias Cândido de Lima, sobrinho de seu Júlio, reclama da dificuldade e dos encargos para conseguir o milho da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). "Pagamos três fretes, de Mato Grosso para Fortaleza, R$ 2; de Fortaleza para Ibaretama, R$ 3 e da sede do nosso município até a zona rural, mais R$ 2. Assim, a saca do milho que é entregue por R$ 18 chega até nós por R$ 25. É bem verdade que ainda vale à pena, pois a saca custa R$ 50 em locais como Ibicuitinga e Quixadá. Além disso, há muita dificuldade de encontrar o produto".

Lamento

A esposa de seu Júlio, dona Maria Eduarda de Lima, 75 anos, relata que a aparente tranquilidade do marido não condiz com a realidade. "Ele passa noites sem dormir contrariado com a situação dos animais. É muito dolorido vê-los passando fome e sede. Quem não cria, não se desespera tanto. Mas a gente observando de perto sente uma agonia enorme, um grande aperto no coração. Rezo todos os dias pedindo para que esse sofrimento tenha fim e a água da chuva volte a molhar o nosso chão".

Agricultor troca a enxada e a lavoura pelo bordado

Nova Russas "Pior é ficar em casa de braços cruzados. Só não tenho coragem para matar ou roubar". Com esse argumento, o agricultor José Ferreira do Nascimento justifica sua decisão de trocar a agricultura pelo bordado para ajudar a família a obter renda no período de seca.

José Ferreira do Nascimento, ao contrário de muitos homens na região, assume o feito e garante que não se sente diminuído em nada, muito pelo contrário


Diferentemente de muitos homens da região, que adotaram a mudança nos últimos meses, mas não se mostram dispostos a assumir de público tal fato, José encara a situação sem meias palavras. "Isso não mexe com a masculinidade de ninguém. Sei de muitos conhecidos que bordam dentro de casa, escondidos, e mandam vender suas peças através das esposas na feira".

O depoimento é reforçado pela coordenadora de mulheres do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Nova Russas, Núbia Carvalho. "Temos notícia de muitos que trocaram a enxada pela agulha de bordar. No entanto, o preconceito é muito grande ainda aqui no sertão e a maioria prefere manter a atividade no mais completo anonimato". Núbia lembra que a tendência é natural no município, já que Nova Russas é conhecida como "capital estadual do crochê".

Atividade principal

A vocação de José para o crochê começou aos sete anos, ao observar, em casa, sua mãe e as irmãs bordando. "É algo que surgiu naturalmente. Mas nunca havia bordado tanto como atualmente. É que essa seca nos pegou de jeito. Não tem mais nada a fazer na lavoura. Não adianta plantar. É perda de tempo e de dinheiro. Tinha que ajudar a minha mulher a aumentar a renda e aí passei a fazer do crochê, nos últimos meses, minha atividade principal", conta José Ferreira.

O agricultor explica que a família não passa por dificuldades extremas. "Recebemos o Bolsa Família e o Seguro Safra. Esse dinheiro já garante uma certa tranquilidade. As peças que eu e minha esposa fazemos complementa nossa renda".

Para fazer apenas uma peça de mesa de centro grande, José leva quase um dia. "Com cerca de vinte bordados por mês dá para a gente faturar um dinheirinho legal, já que a unidade custa R$ 15,00. Sabemos que muitos atravessadores ainda ganham em cima do nosso trabalho. Mas, o negócio funciona assim. O que se há de fazer", diz resignado.

Dentre os amigos ou conhecidos, há aqueles que reprovam a atitude do agricultor, alegando, segundo ele, que fazer crochê não "é coisa de homem".

José admite que se trata de uma situação complexa. "Eles podem até ter um pouco de razão, afinal de contas, essa sempre foi uma atividade das mulheres. Porém, as coisas estão mudando e pegar numa agulha não diminui ninguém. Sem falar que contribui para garantir a sobrevivência da minha família".

Apesar da perícia adquirida ao longo do tempo, José destaca que as mulheres têm mais habilidade. "Talvez pelo fato de estar fazendo de forma emergencial, apenas para preencher uma lacuna no meu tempo até a chuva voltar e ter que me dedicar novamente ao plantio de feijão e milho, não tenha me aprimorado mais. Quem sabe isso possa ocorrer no futuro".

Trabalho honesto

Onélia Camelo Gomes, esposa de José, lhe dá todo o apoio. "Ele é um grande companheiro. Sabe superar as brincadeiras que alguns fazem por causa do crochê. Para quem duvidar de alguma coisa, quero dizer que ele é muito macho. Tanto é verdade que não tem medo de fazer uma coisa que é atribuição das mulheres. Conheço vários homens aqui em Nova Russas que fazem crochê dentro de casa e dizem que são suas esposas. Acho isso uma besteira muito grande. O importante mesmo é trabalhar honestamente".

Onélia, de 30 anos, é chocheteira. Ela e José moram com os dois filhos Luís Henrique, seis anos, e Raiane, um ano e dez meses, no assentamento Santana, localizado no distrito de Nova Betânia, a 13 quilômetros de Nova Russas. No local, residem ainda mais oito famílias de agricultores. (FM)

Produção

15 reais é o valor de uma peça de mesa no centro bordada pelo agricultor José Ferreira do Nascimento, que chega a produzir 20 unidade por mês

FERNANDO MAIA
REPÓRTER