Países africanos, França e Brasil se unem para o enfrentamento à seca no Semiárido cearense

Ao longo de milhares de anos, Tunísia e Marrocos aprenderam a conviver com a baixa oferta de água. Agora, o Ceará pode aprender técnicas para aplicar no Sertão

Escrito por André Costa , andre.costa@svm.com.br
Legenda: O Sertão Central e dos Inhamuns são as regiões mais secas no Estado, cujo volume de chuva é, historicamente, abaixo da média do Ceará
Foto: FOTOS: KID JÚNIOR

O que há em comum entre Marrocos, Tunísia, França e Brasil? A resposta mais habitual diria que não há semelhança entre essas nações fincadas em três continentes distintos. No entanto, há pelo menos uma década, o semiárido os uniu. Não territorialmente, é claro, mas no campo das ideias. Marrocos e Tunísia aprenderam a conviver, há milhares de anos, com a pouca oferta de água. A França não sofre dessa problemática, que passou a ser vivenciada com maior intensidade no Ceará nos últimos anos, mas dispõe de pesquisadores inclinados a estudar métodos que ampliem a resiliência e sustentabilidade de áreas rurais.

O francês Julien Burte é um deles. Ele integra o Centro Francês de Pesquisa Agrícola para o Desenvolvimento Internacional (Cirad) e, há 13 anos, imergiu no semiárido cearense. Por mais de uma década, estudou os problemas acarretados pela escassez hídrica no Sertão Central, uma das regiões mais secas do Ceará.

Para se ter uma ideia da gravidade da estiagem, neste ano, a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) observou apenas 601,4 milímetros naquela região, o que representa 11% a menos que a média para o ano. Igual cenário foi verificado ao longo dos últimos nove anos. Somente em 2011, a região do Sertão Central, ainda conforme dados da Funceme, contou com chuvas acima da média.

Mas qual seria o melhor investimento para garantir segurança hídrica ao sertanejo: poços, adutoras, cisternas, carros-pipas ou açudes?

Na visão de Julien Burte, não há uma resposta única. Durante mais de uma década de estudos, o pesquisador observa que dentro de uma mesma localidade, "há realidades completamente distintas", como é o caso das cidades de Alto Santo e Pedra Branca.

A primeira, conforme aponta o relatório do francês, conta com uma cisterna para cada cinco famílias. Já em Pedra Branca, cada equipamento assiste a apenas duas famílias. "É um exemplo claro de que não podemos aplicar uma única política para todo o Estado", reitera.

Gestão

Política essa que, para Julien, está deficitária. Ele avalia que há um cenário de ausência de gestão pública que discuta a questão de forma analítica e respeitando as especificidades de cada região.

O presidente da Funceme, Eduardo Sávio Passos Rodrigues Martins, concorda. Em sua avaliação, é preciso pensar em uma gestão "que alcance o nível local e não olhe apenas para a macroestrutura".

Burte assente e reforça que "há uma diferença sensível dentro de uma mesma localidade. Por isso é importante uma gestão que conheça essas particularidades para, a partir do entendimento, desenvolver a melhor estratégia para a cidade ou comunidade".

No entendimento de ambos, esse é o principal desafio a ser vencido no enfrentamento à seca no Ceará. Para discutir essas questões, membros da Rede Franco-Brasileira pelo Desenvolvimento Sustentável no Semiárido do Nordeste (ReFBN) se reuniram nos últimos três dias, em Fortaleza, com o objetivo de cruzar pontos de vista e experiências entre diferentes regiões do mundo com discussões que envolveram cientistas, formuladores de políticas públicas e agências de financiamento.

O evento internacional intitulado "Resiliência e sustentabilidade de áreas rurais semiáridas: fatores que influenciam os recursos hídricos e as partes interessadas - pontos de vista do Brasil e Magrebe/África", termina hoje (20), e reúne estudiosos da Tunísia, França, Marrocos e Brasil.

Aprendizado

Durante o evento, os especialistas compartilharam ideias de enfrentamento à seca. O marroquino Abdelilah Taki, do Departamento de Engenharia Rural do Marrocos, explica que, em seu país, mesmo diante dos problemas hídricos milenares, 80% do consumo do país são para irrigação.

"Tivemos que reestruturar nossa agricultura, com investimentos em novas tecnologias", pontua, ressaltando a parceria público/privado. Segundo ele, essa união de forças, "permitiu captar recursos para, por exemplo, investir no sistema de irrigação".

No Brasil, este índice já chegou a ser de 60%, conforme a instrutora da Agência Nacional das Águas (ANA), Rosana Garjulli Sales Costa. Hoje, com as frequentes ocorrências de seca, o consumo pela irrigação gira em torno de 20%.

O tunisiano Naoufel Ben Haha recorda as semelhanças existentes entre seu país e o Brasil. Ele destaca que apenas um terço da população se beneficia de uma pluviosidade igual ou superior a 400 milímetros por ano.

O domínio do clima seco faz com que a maior parte do território tunisiano seja considerado, a partir da definição oficial estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), como sendo "suscetível à desertificação".

Para o presidente da Funceme, entender como essas nações enfrentam a seca é vital. "É inteligente aprender com os erros e acertos deles. São países que lidam com a seca há milhares de anos, então essa troca de conhecimento pode ajudar no direcionamento das políticas a serem aplicadas", conclui Eduardo Sávio.

O francês Julien Burte acrescenta que permuta de conhecimento, além de salutar, é urgente. "Temos que agir rápido. É preciso nos adaptarmos à nova quantidade de água que hoje é reduzida".

Papel do Estado

Diante de índices pluviométricos tão baixos, a população padece. São dezenas de milhares de famílias que tiram o sustento da água que cai do céu e molha o chão. Contudo, com as secas recorrentes, é preciso que o Estado intervenha.

Nesta última década, as investidas são muitas e estão capilarizadas. Nos últimos quatro anos (2015-2019), foram construídos 7.284 poços, o que representa mais da metade (52,2%) de todos os poços construídos ao longo das últimas três décadas (13.805), conforme o titular da Secretaria de Recursos Hídricos (SRH), Francisco Teixeira.

Medidas

No ano passado, a SRH e o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) iniciaram a construção de 20 barragens que devem ficar prontas até 2027, com custo aproximado de R$ 2 milhões.

Três reservatórios já tiveram os trabalhos iniciados (Fronteiras, no Sertão de Crateús; Amarelas, na Região Metropolitana de Fortaleza; e Melancia, no Curu) e outros três (Jucá, no Alto Jaguaribe; Lontras, no Sertão de Crateús; e Trairi, no litoral cearense) devem ser iniciados já em 2020.

A partir de 2028, mais nove reservatórios serão edificados. "A maioria se concentrará na região Norte, porção do Estado onde as chuvas são mais regulares", detalha o secretário.

Além dos poços e açudes, o Governo do Estado também tem investido na construção de cisternas e se valido de carros-pipas.

Aproximadamente 10% da população cearense (quase 900 mil pessoas) já foram atendidas pela Operação Carro-Pipa, ainda conforme Teixeira. As múltiplas tratativas revelam a gravidade do cenário de escassez hídrica no Sertão cearense.