Municípios cearenses não prestaram contas de R$ 27 milhões

O único recurso público usado diretamente para o controle de doença de Chagas é repassado, às prefeituras, pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), para a substituição de casas de taipa. O pagamento chega, nem sempre fica

Escrito por Melquíades Júnior , melquiades.junior@diariodonordeste.com.br
Legenda: Casas de taipa, à base de argila, seguem como moradias comuns nas regiões mais carentes do País
Foto: FOTO: MELQUÍADES JÚNIOR

Tem, mas está faltando. Tem ainda mais, porém, está "empenhado", ou suspenso mesmo, até segunda ordem. Não se diz que é por incompetência, improbidade, ou as duas coisas. Falamos de dinheiro.

Nos últimos dez anos, os municípios brasileiros receberam um total de R$ 294 milhões do Governo Federal para a substituição de casas de taipa por outras de alvenaria. É o único recurso em todo o País executado diretamente para o controle de Doença de Chagas. O problema: o dinheiro nem sempre chega onde devia. Em tese, para as pessoas mais pobres. Não moram em casa de taipa por ser ela mais sustentável, rústica ou ecológica. É pobreza mesmo. A falta de manutenção desse tipo de moradia, de paredes cujas frestas abrigam os insetos barbeiros, é um dos maiores problemas dessa população mais pobre.

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O Programa de Melhoria de Habitação para o Controle de Doença de Chagas (PMHDC) é repassado, via Fundação Nacional de Saúde, para milhares de prefeituras municipais.

Somente no Ceará, um dos maiores beneficiários, o programa atendeu a 124 municípios nos últimos dez anos. Desses, 20 municípios cearenses apresentam pendências ou atrasos nas obras. Entre 2008 e 2018, eles receberam R$ 27 milhões para substituição de casas de taipa. Alguns contratos foram cancelados com parte do dinheiro já liberado. Uma proporção bem menor dos valores foi recuperado após ações de improbidade movidas pelo Ministério Público Federal (MPF).

Investigados

Nos últimos três anos, pelo menos seis municípios cearenses foram investigados por suposta apropriação ilícita de recursos públicos: Umari, Poranga, Lavras da Mangabeira, Nova Russas, Quiterianópolis e Acarape são alguns deles. Os ex-gestores foram investigados criminal e administrativamente. Como as pendências atrapalham a continuidade de recursos, os gestores que assumem tentam rever a situação.

O município de Jaguaretama recebeu, entre 2010 e 2010, R$ 150 mil para substituição de casas de taipa. O valor total do convênio era de R$ 300 mil, mas foi suspenso porque, até o último relatório feito pela Funasa, as obras ficaram em 59% da execução.

Em 2015, o município conseguiu fazer um novo convênio, de R$ 500 mil, que chegou a ser paralisado por falta de prestação de contas. Em 2017, o atual prefeito, Glairton Cunha, conseguiu a liberação da primeira parcela de R$ 250. O restante foi pago em novembro deste ano.

"Esse primeiro contrato, não conheço, mas o segundo nós conseguimos na atual administração, retomar. Estive até com o responsável nesta semana cobrando a reconstrução", afirma o prefeito. O segundo contrato, de R$ 500 mil, será usado para a substituição de nove casas de taipa na localidade de Sítio Almas.

A reportagem obteve, via Lei de Acesso à Informação (LAI), a relação de todos os contratos da Funasa com municípios brasileiros para o controle de doença de Chagas.

Alguns casos chamam atenção, sobretudo, em municípios endêmicos, como Quixeré, terra de Taciana Varela, apresentada ontem nesta série. Descobriu estar infectada aos 16 anos após exame de pré-natal. Ao lado de Limoeiro do Norte, Quixeré é a segunda maior origem de pacientes no centro de pesquisa em Chagas da Universidade Federal do Ceará (UFC), em Fortaleza.

O município recebeu, entre 2008 e 2012, o valor de R$ 525 mil para uma obra que, conforme o último relatório apresentado, estacionou em 40% de execução. "Parece que o dinheiro sumiu, porque foi a gente que concluiu as próprias casas. Outros fizeram por conta própria", diz Luzanir Nogueira, que pra ser 'dona de casa nova' precisou ser pedreira. Outros R$ 225 mil, do mesmo contrato ainda estão empenhados.

Pitiúba, o prefeito à época dos contratos, não foi localizado para comentar. Nos casos em que a Funasa não consegue receber a prestação de contas, tem o apoio do Ministério Público Federal, que chega a reaver parte do dinheiro liberado e sem comprovação de obra. Foi o caso de Quiterianópolis: em 2013 recebeu R$ 250 mil e três anos depois ainda não tinha toda obra executada. Após ação de improbidade, a parte que faltava comprovar foi devolvida, e o caso, arquivado.

Em 2016, o MPF moveu ação contra o ex-gestor de Poranga, Anderson Magalhães, que em 2012 não prestou contas de R$ 300 mil de um total de R$ 750 mil do convênio.

A existência do repasse de verbas e das irregularidades dos recursos destinados às obras foram também comprovadas em tomada de contas realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Na ação, o MPF pedia que o réu fosse condenado a ressarcir integralmente o dano, "além da aplicação das sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa", ressaltou o procurador Oscar Costa Filho.

Barro no caminho

As pendências em recursos da Funasa se tornaram um empecilho para políticos que tentam se reeleger, especialmente após a Lei Complementar nº 135, de 2010, mais conhecida como Lei da Ficha Limpa.

Era de taipa toda a comunidade de Bernaldo, em Maracanaú, Região Metropolitana de Fortaleza. Cansados de esperar, 35 famílias construíram sozinhas as casas de tijolo, onde, hoje em dia, os fazedores de promessas voltam a cada dois anos para pedir votos.

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