Engenho a tração animal prioriza tradição a lucro no Sertão do Ceará

Em Solonópole, família de agricultores usa a "junta de boi", há 85 anos, para moer a cana-de-açúcar. Os animais são bem alimentados e substituídos a cada 3 horas para descanso. Por dia, são produzidas 200 rapaduras à moda antiga

Escrito por Antonio Rodrigues , regiao@verdesmares.com.br

A fumaça na fornalha pode ser vista de longe. O cheiro do "caldo" cozinhando também é sentido nas primeiras horas da madrugada. É por volta de uma hora da manhã que os primeiros bois são amarrados pelo chifre para dar a tração da moenda.

O trabalho em ritmo lento vai até as 16 horas. Paralelo a isso, homens e mulheres se revezam nas caldeiras e formas para produzir a rapadura. O cenário narrado parece algo do século passado, mas pode ser visto hoje no Sítio Veneza, na zona rural de Solonópole.

O engenho por tração animal surgiu a partir da escassez hídrica, no século XVIII. Décadas depois, com o desenvolvimento tecnológico, os animais foram substituídos por vapor, diesel e eletricidade.

No entanto, a família Coelho mantém a tradição iniciada há 85 anos ininterruptos. O lucro do engenho é pequeno - ou talvez nem exista. São fabricadas 200 rapaduras por dia. A carga, para 100 unidades, é vendida entre R$ 600 a R$ 800. O valor líquido, quando dividido entre todos os membros da família que trabalham no engenho, é pequeno.

Mas o que importa, para eles, é reunir a família no engenho. "É um momento de confraternização, de estreitar ainda mais os laços. Hoje o mundo está tão globalizado e tecnológico que quase não há mais interação entre os parentes", diz o agricultor Raimundo Nonato Coelho, que conduz os trabalhos no tradicional engenho de Solonópole.

As atividades são feitas em conjunto. Alguns alimentam os animais, enquanto outros transportam a matéria-prima no lombo do burro.

Na própria estrutura, um deles conduz os bois, enquanto o caldo segue por um cano por baixo da terra até chegar no tanque. O líquido vai para as caldeiras, onde o calor, misturando sem parar, vai dando a consistência necessária para ser levado às formas. Lá "descansa" até se tornar a popular rapadura. Enquanto isso, duas mulheres, de forma exaustiva, puxam e esticam a massa para fazer o alfenim (doce de massa branca).

O engenho foi construído em 1928 e produziu até 1932, ano no qual houve uma grande seca que afetou o cultivo de cana-de-açúcar e matou parte do gado. Dois anos depois, a fabricação artesanal foi retomada e nunca mais parou. Nem mesmo a chegada da energia elétrica na comunidade, em 1998, foi capaz de substituir o trabalho dos animais.

"De 1960 para cá, era ferro, mas antes era tudo de pau. Tudo de madeira. Não tinha parafuso. Era essa tradição. Sempre no boi. Acho que quando a gente parar, não vai ter mais em canto nenhum. É difícil. Aqui é só para manter a tradição. Tem até muito motor de engenho parado. Se quisesse, comprava, montava, mas a gente luta para manter como deixou meu avô", explica o agricultor Raimundo Nonato.

O costume de unir a família para moer a cana sempre foi um momento singular, mas que não gera lucro também para a família do agricultor Erasmo Carvalho. "Se botar na ponta do lápis, não dá rendimento nenhum. Mas a tradição faz a festa. Isso é a coisa melhor do mundo". Este, mesmo reconhecendo a agilidade dos engenhos "motorizados", romantiza o barulho da cana-de-açúcar quebrando.

"No engenho de pau, ouvia de longe", lembra. A ansiedade para reunir a família nesse período é maior nos últimos dois anos, já que o "inverno" ajudou na produção. "Teve anos de estiagem que fracassou muito. Do ano passado para cá, foi melhor", afirma a agricultura Lúcia Maria Coelho. A intenção é que os mais jovens continuem com este trabalho.

"Meus meninos, mesmo trabalhando fora, tentam ajudar", pontua a também agricultura Erivônia Fernandes da Silva. Ela ressalta o "bom tratamento" dado aos animais, sempre alimentados com ração para trabalhar por até três horas. Depois disso, a "junta de boi" é trocada por outros que estão descansados. "Sem os bois, não tem nada", garante o agricultor Manoel Cláudio Coelho.

Cultura

Do ponto de vista educativo, o historiador Sérgio Pinheiro acredita que esta tradição é importante para que os mais jovens percebam como era o trabalho na maioria dos engenhos até o século XIX. "É a preservação cultural. Muito raro encontrar um assim", conta.

Manter a tradição em detrimento do lucro não é uma opção considerada pela maioria. No Sítio Macacos, zona rural de Lavras da Mangabeira, o engenho da família Holanda, que já alcança dois séculos, se mantém de pé como o único no Município graças ao desenvolvimento tecnológico, já que iniciou com a tração animal, passou pelo motor a diesel e, hoje, tem moenda movida com energia elétrica.

Apesar do avanço tecnológico, o engenho mantém alguns processos "às antigas", como a produção do mel, rapadura, batida e alfenim. Lá, tudo é bem definido e as funções tradicionais do "cacheador", "caldereiro", "corta mel" e "trombador" permanecem como no século passado. Tudo é orquestrado por José Wilson, de 62 anos de idade, e que há décadas trabalha na produção de rapadura e doces. Tanta experiência lhe rendeu o título de mestre da rapadura.

"Antes de chegar a mestre, eu passei por todos eles. Você precisa aprender tudo para se tornar um mestre", explica. No engenho em que trabalha, são fabricadas até 1.500 rapaduras por dia, que são vendidas para Várzea Alegre, Cedro e Icó. Diferente do engenho de Solonópole, este consegue gerar lucro, garante Wilson.

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