Carnaúba, planta símbolo do Ceará, será atração no Carnaval do Rio

As folhas da palmeira endêmica do Semiárido nordestino, trabalhadas por artesãs cearenses, embelezarão o desfile no Sambódromo. Os adereços farão parte do carro abre-alas da Escola de Samba União da Ilha do Governador

Escrito por André Costa , andre.costa@verdesmares.com.br

As marcas expressivas nas mãos, adquiridas ao longo dos anos, denunciam o extenso período de tempo que dona Nicinha dedica à arte de fabricar peças utilizando a palha de carnaúba na comunidade em que vive desde os primeiros anos de vida. É no Sítio Volta, interior de Jaguaruana, no Vale do Jaguaribe, que ela e outras 15 artesãs se reúnem diariamente para transformar a palha em arte.

De tão exuberantes, as peças do grupo ultrapassaram fronteiras e chegaram até a Cidade Maravilhosa. Neste ano, serão elas as responsáveis por ornamentar o carro abre-alas da Escola de Samba União da Ilha do Governador, cujo samba-enredo mostra a fictícia peleja poética entre Raquel de Queiroz e José de Alencar.

A carnaúba, palmeira endêmica do Semiárido da região Nordeste do País, vai dar forma à poesia em forma de samba e representar uma parte importante da cultura cearense na Marquês de Sapucaí.

Cerca de 15 mil peças, produzidas ao longo de 70 dias, foram exportadas para o Rio de Janeiro. A maior parte do material será utilizada na decoração do carro abre-alas e de diversos outros adereços e fantasias que vão compor o desfile que a União da Ilha do Governador levará à Avenida. A agremiação também vai usar peças em renda de filé, confeccionadas por artesãs do município de Jaguaribe.

Para atender à demanda extra, um grupo de 15 mulheres do projeto Memorial da Carnaúba teve reforço. Cerca de 140 pessoas, entre artesãs, extrativistas e jovens-aprendizes se uniram em um trabalho cooperado para confeccionarem franjas, descansos de prato, esteiras, chapéus, leques, mandalas, flores e outros produtos feitos com a palha. Aliás, diante dessa múltipla variedade de aplicações, a palmeira passou a ser conhecida como "árvore da vida".

A pluralidade de produtos derivados da carnaúba simboliza com fidelidade o roteiro de vida do sertanejo, marcado por luta, superação e arte, conforme versam os poemas de Rachel e Alencar. Conforme o carnavalesco da União da Ilha, Severo Luzardo, é a primeira vez que um trabalho como esse passa pelo sambódromo. "Tivemos toda a preocupação com o tingimento da palha da carnaúba, mesclando com trabalhos delicados. É uma conjunção da estética do Carnaval aliada à prática do artesanato para realização de um projeto único, que funcionou muito bem. São portas que se abrem".

Todo o trabalho de extração e de artesanato da palha da carnaubeira é realizado no Memorial da Carnaúba, criado há 11 anos no sertão cearenses. Dirigido por Daisy Rocha e Afro-Negrão, o projeto acolhe centenas de produtores rurais e artesãos de baixa renda que tiram o sustento da planta. O desfile, além de reconhecer o trabalho das artesãs, será uma grande vitrine para a relevância da carnaúba e também para o trabalho desempenhado pelo grupo.

Para além de levar formas e cores à Sapucaí, as peças conferem mais dignidade às mulheres que há décadas dedicam a vida à arte. "Elas fazem esse trabalho há muitos anos. Algumas, desde quando se entendem por gente, como é o caso de dona Nicinha, que há mais de 60 anos pratica o ofício. Então, ter suas peças expostas em um desfile que pessoas de 124 países estarão assistindo, é um prêmio. Ele dignifica e reconhece a importância que essas artesãs possuem não só para o Estado, mas para todo o Brasil", diz Afro.

Valor

O Memorial não especificou o valor pago pela Escola de Samba a cada um dos envolvidos neste projeto, entretanto, o relato das artesãs expõe que o trabalho desempenhado vai além do financeiro, transcende o campo material. "Comprei uma bicicleta para levar minha neta à escola", conta a artesã que, há duas semanas, fazia o percurso de 3km a pé. "Outras adquiriram eletrodomésticos, quitaram contas ou fizeram algum ajuste em suas cascas", acrescenta o fundador do Memorial.

Há 20 anos, Afro-Negrão pesquisa e estuda a carnaúba do Ceará, fazendo um papel de ligação entre o campo e a indústria. "Temos procurado dar mais qualidade, identificando as dificuldades de campo para manutenção do processo. A partir disso, encontramos cinco pontos a serem trabalhados com as comunidades, que são o aspecto cultural, artístico, social, ambiental e econômico, todos envolvidos no processo da carnaúba", explica Afro.

Preservação

Nos campos ambiental e econômico, ele destaca que a exposição das peças do Carnaval carioca reforça o discurso "de preservação da palmeira". Lembra que o Memorial abrange uma área de 110 hectares composto majoritariamente por carnaúba. "Todos passam a olhar diferente para a preservação do meio ambiente. Quem ainda não tinha consciência de que pode se extrair renda sem afetar a natureza, começa a ter. Esse foi um trabalho singular, que trouxe orgulho, dignidade e renda", conclui Afro-Negrão.