Ascensão e declínio do Feiticeiro revelam diferentes lados da política de açudagem

Inaugurado pelo então presidente Getúlio Vargas, em 1933, a obra permanece na memória dos seus moradores

Escrito por Honório Barbosa - Colaborador ,
Legenda: O declínio veio com a queda no volume e na produtividade agrícola
Foto: Fotos: Honório Barbosa

Jaguaribe. Em setembro próximo, o Açude Feiticeiro, localizado na zona rural deste Município, completa 85 anos de conclusão. Iniciado em 1932, ano de uma das mais severas secas que atingiu o sertão cearense, e inaugurado pelo então presidente Getúlio Vargas, em 1933, a obra permanece na memória dos seus moradores e, segundo registros históricos, foi marcada por reunir milhares de operários, que enfrentaram trabalhos pesados, sol escaldante, doenças, sofrimento e morte.

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O governo federal encontrou na construção de açudes a principal ação de combate aos efeitos da seca, a partir da contratação de trabalhadores rurais famintos e fornecimento de gêneros alimentícios. As obras públicas evitavam o deslocamento em massa das famílias de retirantes para a capital cearense.

Na década de 1930, dois açudes foram construídos no sertão cearense: o Joaquim Távora (Feiticeiro), em Jaguaribe; e o Lima Campos, em Icó. Anteriormente, entre 1890 e 1906, houve a construção do Açude Cedro, em Quixadá, cujo projeto havia sido autorizado no período do Império, por Dom Pedro II.

Outros dois projetos surgiram no Estado para a construção dos açudes Poço dos Paus, em Cariús, e Orós. As obras iniciaram, mas foram logo paralisadas, por volta de 1922, com o fim do mandato de Epitácio Pessoa na Presidência da República.

Na década seguinte, as atenções ficaram voltadas para o Feiticeiro e o Lima Campos. Acreditava-se que a água acumulada nos reservatórios iria acabar com a seca, gerar ocupação, renda e assegurar a produção de frutas, cereais, criação de peixe e de animais. Expectativa semelhante ocorre nos dias atuais, quando se fala no Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco.

Pesquisa

A professora Aline Teixeira Peixoto coordenou, com alunos do Ensino Médio da sede do distrito, uma pesquisa, realizada entre 2011 e 2013, que resultou na publicação do livro "Comunidade de Feiticeiro - história e cultura nas memórias e espaços locais". A obra literária resgata a origem do povoado, os momentos da construção do açude, relatos de moradores antigos, período de produção e de declínio, além de manifestações culturais e religiosas do lugar.

"Só existiam três casas no antigo Sítio Feiticeiro, mas, a partir da construção do açude, ocorreu a migração de milhares de trabalhadores, e o crescimento da vila", observou. "Resgatamos a nossa história, por meio dos relatos dos antigos moradores. Alguns eram crianças em 1932, mas trazem a memória viva da luta, da coragem, do sofrimento, das doenças e mortes e de muito trabalho", acrescentou.

Para a historiadora Aline Teixeira, a influência política da família Távora, de Jaguaribe, foi definitiva para a construção do Açude em Feiticeiro. "O então presidente Getúlio Vargas olhou para o Nordeste. O Ministro da Agricultura era Juarez Távora e, no programa de açudagem, surgem o Feiticeiro e o Lima Campos, obras que tinham também o objetivo de conter os flagelados da seca", pontuou. "Nesse contexto há resistência e muito trabalho de gente humilde".

Não se tem números exatos, mas muitos morreram em Feiticeiro vítimas de febre tifoide. Uma casa foi transformada em hospital. O médico de Iguatu, Manoel Carlos de Gouvêa, e outros atenderam na comunidade e a campanha da vacinação fez com que muitos resistissem. Esse relato ainda hoje é vivo na memória dos descendentes dos trabalhadores.

"As pessoas evitavam a vacina, mas, se não tomassem, eram expulsas", relembrou o morador João Batista Malaquias, 91. "O trabalho era muito pesado, meu pai trazia areia, pedra, de longe, em carro de mão, outros em jumentos e burros". Malaquias acrescenta: "Todos os dias morria gente, e as famílias moravam em barracas".

As epidemias matavam dezenas de pessoas por dia. Em valas, eram enterradas as vítimas das doenças que se abatiam sobre os trabalhadores. Segundo Cicinato Ferreira Neto em "Estudos da História Jaguaribana", o paratifo atingiu 200 pessoas.

As terras para construção do reservatório foram doadas por moradores, não houve desapropriação. "Esse é um aspecto peculiar", assinala Aline Teixeira. Dentre as áreas, estava uma da família de Juarez Távora.

Atraídos

A construção da barragem atraiu milhares de sertanejos que viram a oportunidade de encontrar trabalho, comida, renda e alguns sonhavam em mudar de vida a partir da água acumulada no açude. "Muitos não tinham para onde ir, ficaram, ocuparam áreas, foram ser pescadores e agricultores", pontua Aline Teixeira. "Vieram fazer a vida, mas muitos voltaram com o fim da obra".

O Açude Feiticeiro, denominado oficialmente de Joaquim Távora, foi construído pelo órgão antecessor do atual Dnocs, a Inspetoria Federal de Obras contra a Seca (Ifocs). Mesmo diante da vida árdua, os trabalhadores mantinham a presença do espírito cômico do cearense e logo apelidaram a instituição pública de "Isso faz o cassaco sofrer".

Calçadas

Os moradores de Feiticeiro mantêm o costume de sentar pela manhã e no fim de tarde nas calçadas. Rosa Barbosa, 91, e a filha, Luíza, aproveitam a sombra da casa antes de o sol vir a pino e colocam cadeiras no passeio. Alegre e com boa memória, conta que o pai, Saul, trabalhou na construção do açude. "Era uma luta. Ele botava terra no jumento, mas, com muita dificuldade, venceu e chegou a colocar uma bodega. "Às vezes ele ficava nervoso, sonhava com a seca, e passava dias deitado, sem coragem para nada", rememorou.

Rosa Barbosa conta que o pai, ao ver o açude construído e anos seguintes cheio, revelou: "Meu sonho foi realizado". A aposentada lembra que muitos passaram a trabalhar em vazantes, pescavam e plantavam feijão, jerimum e frutas. "Houve tempo de fartura, trabalho, as coisas melhoraram para todos".

José Cantídio Rolim Feitosa, 93, nasceu na Serra de São Miguel, em Icó, na divisa com o Rio Grande do Norte, e veio para Feiticeiro em 1932, com o pai, aos sete anos. "Ele trabalhou em serviço de rodagem e no açude, recebia mantimentos e assim a família escapou. Percorria duas léguas (12Km), conduzindo terra em caixotes na cabeça", contou. Feitosa disse que, após a construção do açude, a situação melhorou para muitos.

Por quase 60 anos, Feiticeiro assistiu a um período de crescimento, com produção agrícola nas várzeas do açude. Foi implantado até um pequeno perímetro irrigado, pelo Dnocs. "Tivemos momentos de pujança e declínio", observa o professor Geraldo Bezerra de Menezes. "Esse açude sempre foi a esperança de um futuro melhor".

Durante mais de seis décadas, Feiticeiro produzia frutas (coco e goiaba), peixe e cereais, que eram vendidos no mercado local para a região jaguaribana. "Havia fartura, movimentação no mercado, mas, depois de 2000, veio o declínio com a perda de água no açude e queda na produção agrícola", pontuou Menezes. "Esse é um problema que se agravou nos últimos oito anos e agora não temos sequer água para beber".