Tempo de adaptação à Lei Anticrime preocupa promotores no Ceará

A Associação Cearense do Ministério Público discutiu as mudanças trazidas pela legislação aprovada pelo Congresso Nacional e os principais impactos na atuação dos promotores de Justiça, principalmente diante do curto tempo de adequação previsto para a vigência das novas regras

Escrito por Luana Barros , luana.barros@svm.com.br
Legenda: A ACMP realizou palestra com promotores de outros estados para discutir impactos da lei
Foto: Foto: José Leomar

Aprovado pelo Congresso Nacional, o Pacote Anticrime entrou em vigência no fim desta semana, ainda que de maneira incompleta. Decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux suspendeu diversos pontos da Lei 13.964/2019, dentre eles o juiz de garantias, que vem sendo questionado por diferentes instituições ligadas ao sistema de Justiça brasileiro. Contudo, os dispositivos não incluídos na decisão do ministro entraram em vigência apenas 30 dias após a aprovação em Brasília. O intervalo curto é a principal preocupação dos promotores que integram o Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE).

Com o intuito de elucidar os pontos da nova legislação em vigência, a Associação Cearense do Ministério Público (ACMP) realizou ontem palestras com promotores de Justiça de outros estados e que participaram das discussões sobre o Pacote Anticrime enquanto ele ainda tramitava no Congresso Nacional.

O presidente da ACMP, Aureliano Rebouças, aponta as necessidades de adequação da estrutura do órgão para as novas demandas que devem ser exigidas a partir da nova legislação.

"Como são alterações na estrutura do processo penal em si, nós vamos precisar de mais pessoal para nos adaptarmos a essas mudanças. Vamos precisar de toda uma estrutura para que haja uma solução de continuidade", explica Aureliano. "A gente tem essa preocupação de que essas alterações não venham causar nenhum prejuízo à atividade que vem sendo prestada pelo Ministério Público", pontua.

O promotor de Justiça Marcus Amorim concorda. Para ele, o período de tempo determinado até a vigência chega a ser "uma irresponsabilidade do legislador", afirma.

"Em outros países, onde mudanças parecidas foram feitas nos últimos anos, esses prazos variavam entre um e dois anos. No Chile, por exemplo, foram cinco anos para o sistema se adaptar com coisas muito parecidas com a que nós temos agora. Aqui, foram 30 dias, uma correria", afirma o promotor.

Estrutura

Este problema é grave, principalmente pela necessidade de uma nova estruturação do Ministério Público para conseguir atender às novas regras impostas pelo Pacote Anticrime. "A preocupação é quanto à estrutura e ao modo como isso vai ser implementado. Nós não temos uma estrutura dentro do MP. A gente tem muitas deficiências em relação à quantidade de promotores, (além de) um déficit de servidores e assessores", afirma.

Por isso, há um questionamento inclusive quanto à competência da iniciativa do Poder Legislativo para realizar estas modificações. "É uma lei que altera a estruturação do Poder Judiciário, que vai criar cargos e despesas. Quem vai promover essa reestruturação dos órgãos com orçamento próprio é o Poder Judiciário", diz o promotor Rodrigo Paul.

Hoje, o Ministério Público do Ceará possui 378 promotores de Justiça no quadro da Instituição, além de 48 procuradores, responsáveis pela segunda instância do órgão.

Alterações

No centro do debate, está um novo instrumento que tem como principal operador os promotores do MP: o acordo de não persecução. "É um acordo enigmático, porque a legislação não tratou dos requisitos para este acordo", afirma o promotor de Justiça de Mato Grosso, Renee Souza.

Um dos palestrantes, Souza considera que acordos realizados trouxeram ganhos no passado, quando feitos por meio do Poder Judiciário, e a autonomia do Ministério Público de ter este instrumento ao alcance para processos civis e penais pode contribuir com a celeridade dos processos.

"Neste acordo, o Ministério Público poderá antecipar, por meio de um negócio, a resolução de um problema, podendo, inclusive, propor que seja pago, a níveis monetários, valores para essa vítima que foi prejudicada pelo criminoso, fazendo também uma Justiça restaurativa", completa a promotora de Justiça do Tocantins Ruth Araújo, que também palestrou durante o evento na ACMP.

O acordo permite ao Ministério Público, após contar com todos os indícios da autoria de determinado crime, iniciar tratativas para negociações com o suposto autor para que ele assuma algumas obrigações e não haja necessidade de processo criminal.

Crimes graves, como tráfico de drogas e homicídios, não teriam possibilidade de integrar acordo como esse. Contudo, delitos como furto, estelionato ou porte de armas, por exemplo, estariam incluídos. O acordo deve ser proposto pelo promotor, não sendo um direito intrínseco do acusado.

Celeridade

"É uma nova forma de lidar com as acusações criminais. Por exemplo, eu trabalho com crimes ambientais. Tirando casos de juizados especiais, que já estão fora por terem uma sistemática própria, todos os outros entram neste acordo, em tese. Então, vai abranger a grande maioria dos casos e vai mudar a forma como nós vamos lidar com isso", afirma Marcus Amorim.

Anteriormente, o período de um processo legal poderia se estender durante anos. O acordo deve, então, dar celeridade ao Judiciário e diminuir o número de processos que tramitam na Justiça.

"Ajuda o Ministério Público a selecionar melhor os processos legais, quando há certos casos que já daria para resolver logo no início. O problema é esse intervalo muito curto (de inclusão da regra), nós fomos pegos de surpresas e tivemos que nos organizar às pressas", ressalta Amorim.

Além do acordo de não persecução penal, outros dispositivos que integram o Pacote Anticrime também entraram em vigência desde a última quinta-feira. "Outros meios de obtenção de prova foram colocados. Agora, é autorizada a captação ambiental, que vai ajudar a gente na diligência de crimes de 'colarinho branco' ou crimes que foram cometidos por funcionários públicos, que são mais difíceis de a gente conseguir uma prova que seja suficiente para a condenação", cita Ruth Araújo.

Mudanças da nova lei

Entre as principais mudanças estão as novas regras para acordos de delação premiada, o novo critério para definir a legítima defesa e a previsão de prisão imediata após condenação pelo tribunal do júri.

Regras suspensas

Foram sustadas mudanças em arquivamento de inquéritos, restrição a juízes no acesso a provas e possibilidade de liberar preso sem audiência de custódia após 24h.

Arquivamento de inquéritos preocupa

Outra alteração que deve ter impacto na atuação do Ministério Público é um novo procedimento para arquivamento de inquéritos policiais, previsto no Pacote Anticrime. Hoje, essa responsabilidade é do Judiciário. Existem três formas de os promotores lidarem com os inquéritos policiais que chegam ao MP. Caso tenha elementos de autoria e materialidade, o promotor ajuíza ação penal; se não tiver elementos, ele pode requisitar diligências para a autoridade policial. </CW><CW-37>Contudo, se não houver provas nem indícios suficientes para nortear a investigação, o promotor solicita arquivamento ao juiz.

“Com a modificação, esse arquivamento não passaria mais pelo Judiciário. Esse arquivamento ficaria dentro do Ministério Público. Neste caso, o promotor não poderia arquivar, ele teria que enviar para uma estrutura de segundo grau, provavelmente para um órgão colegiado de procuradores de Justiça”, explica Aureliano Rebouças. 

“Para isto, vai ser necessária uma estrutura dentro da Procuradoria para analisar milhares de inquéritos”, destaca o presidente da ACMP.

“A estimativa é de que isso aumentasse a resolução dos processos pelo Ministério Público no ano em mais de 50 mil para a instância de órgão superior. E o nosso órgão superior não está paramentado para fazer esse tipo de resolução nessa escala e de maneira tão rápida. Então, isso vai causar um retardo na celeridade da resolução dos processos que poderiam estar sendo arquivados pelo Poder Judiciário”, ressalta a promotora Ruth Araújo. 

Essa alteração, por enquanto, está suspensa pelo Supremo Tribunal Federal. A suspensão vale até o julgamento de mérito da ação pela Corte, que não tem data para ocorrer.

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