O bardo cearense se despede

Aos 70 anos, Belchior deixa órfã uma legião de fãs de diferentes gerações. O músico será velado, em Sobral, no Theatro São João, de 7h às 10h de hoje e, de lá, será trazido novamente a Fortaleza para outro velório, no Centro Dragão do Mar , de meio-dia às 7h de terça

Escrito por Dellano Rios - Editor de área | Adriana Martins - Editora assistente ,

Nas redes sociais, em grupos de mensagens, em mesas de bar. O lamento era um só, uníssono: a enorme perda que a morte de Belchior representa para a música popular brasileira. Ainda que tenha "sumido" dos holofotes e, até onde se sabe, parado de produzir - um afastamento que incluiu amigos próximos e família -, o mistério sobre por onde andava e o que fazia o "rapaz latino-americano" deixava uma nesga de esperança de que ele voltasse aos palcos ou aos estúdios.

Com a morte confirmada do cantor, porém, cessam as esperanças de vê-lo novamente. Belchior faleceu na manhã deste domingo (30), na cidade de Santa Cruz (RS), onde morava com a companheira, Edna Assunção de Araújo (Edna Prometheu), vítima de uma dissecção da aorta - rasgo da parede da principal artéria do corpo humano, causando grande perda de sangue. Segundo o delegado Luciano Menezes, responsável pela investigação, Belchior morreu durante o sono, ouvindo música clássica, no sofá da sala. Segundo Prometheu, que encontrou o corpo pela manhã, ele não tinha problemas de saúde nem tomava medicação.

O corpo do cantor está previsto para chegar hoje (1) a Fortaleza às 5h30. Até o fechamento desta edição, a informação da Secretaria de Cultura do Estado é que ele será levado a Sobral para ser velado no Theatro São João, de 7h às 10h, e, de lá, seria trazido novamente para Fortaleza para outro velório, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), com acesso do público, de 12h às 7h de amanhã (2), quando será celebrada missa de corpo presente. O enterro acontecerá no Parque da Paz, às 9h da terça-feira, onde está o túmulo dos pais do artista. O Governo do Cera se responsabilizou pelo translado do corpo.

LEIA MAIS

.Lembranças de um grande amigo

.Legado de um exímio letrista

."Vamos falar de saudade"

.O último show em Fortaleza

.Sobral faz tributo ao artista

.Homenagens para festejar o ídolo

.Belchior é celebrado em Festival

Tanto o Governo do Estado quando a Prefeitura de Fortaleza decretaram luto oficial de três dias por sua morte.

A obra

O artista nasceu em Sobral, batizado Antônio Carlos Belchior (o antigo parceiro e sócio Jorge Mello sustenta que o quilométrico "Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes" foi inventado, para fazer troça com um repórter que certa vez o entrevistou). Chegou a cursar Medicina em Fortaleza, mas logo abandonou a faculdade para investir na música.

Em Fortaleza, atuou numa cena em formação, por onde circulavam figuras como Raimundo Fagner e Ednardo. Como eles, Belchior se mudou para o Sudeste. Primeiro, para o Rio de Janeiro, onde participou de festivais da canção - e venceu o IV Festival Universitário da MPB, com a música "Na Hora do Almoço". O compositor chamou a atenção e foi gravado por Elis Regina.

O álbum de estreia, "Mote e Glosa" (1974), não teve o sucesso esperado. O segundo foi editado em 1976, pela PolyGram. O artista já se avizinhava dos 30 anos e assistia ao sucesso de colegas de geração, como Fagner e Ednardo, contratados por gravadoras e estourando nas paradas. Belchior foi para uma espécie de tudo ou nada com o disco.

"Alucinação" foi produzido por Marco Mazzola e contou com uma seleção de músicos de fazer inveja - gente que dava suporte para Roberto Calos, Raul Seixas, Tim Maia e outros figurões da MPB. E assim o cearense estreou com um clássico, carregado de sonoridade blueseira e exibindo suas letras longas, cheias de angústia e de crítica ao mundo de seu tempo, claramente inspiradas na lírica de Bob Dylan. Em sua discografia, é o disco que concentra o maior número de sucessos de sua autoria: "Apenas um rapaz latino-americano", "Velha roupa colorida", "Como nossos pais", "Sujeito de sorte", "A palo seco", "Fotografia 3x4", além da faixa-título.

Artista de sucesso, Belchior continuou lançando discos por grandes gravadoras (foram 23 no total), como Warner, PolyGram e BMG. Lançou seu último trabalho de estúdio há 15 anos. "Pessoal do Ceará" foi registrado em parceira com Ednardo e Amelinha. Na última década, com Belchior ausente, instituiu-se um paradoxo. Por um lado, seu trabalho passou a repercutir entre novas gerações, de fãs e compositores. Recebeu homenagens, tributos (em 2005, foi agraciado com o prêmio Sereia de Ouro, promovido pelo grupo Edson Queiroz); multiplicaram as interpretações de suas canções nos palcos. Belchior virou um artista cult.

Por outro lado, sua obra recebeu pouquíssima atenção das gravadoras. No ano passado, a Universal Music lançou a caixa de CDs "Três Tons de Belchior" - com os discos "Alucinação", "Melodrama" (1987) e "Elogio da Loucura" (1988) - e ficou por aí.

Serviços de streaming, como o Spotify, tem em seu catálogo uma discografia desordenada, com datas e títulos errados, álbuns de inéditas misturados com antologias e lacunas feias, como a ausência de "Mote e Glosa" - o LP de estreia de Belchior.

Afastamento

Ainda em 2005, começava uma reviravolta na vida do sobralense, que abandonou a então mulher Ângela Belchior para viver com a produtora cultural Edna Prometheu, depois de conhecê-la na capital paulista, no ateliê do artista plástico cearense Aldemir Martins.

A partir daí, gradativamente foi deixando de fazer shows e se afastando dos amigos. Largou uma agenda de apresentações, patrimônio e bens pessoais - roupas, documentos, quadros, automóveis e apartamento.

Por causa de processos (por não pagamento de pensão alimentícia a três dos quatro filhos e um de natureza trabalhista), teve contas bancárias bloqueadas e ficou impedido de retirar dinheiro relativo aos seus direitos autorais.

Por não pagar as pensões, teve dois mandados de prisão expedidos contra ele. Chegou a se abrigar numa instituição de caridade no Rio Grande do Sul e morar de favor na casa de fãs que nem conhecia, depois de perambular com Edna por hoteis em diferentes cidades e até no Uruguai - várias vezes, sem pagar as contas.

Em 2009, o caso ganhou repercussão nacional com uma matéria no Fantástico (Rede Globo). Nem assim, Belchior retomou as atividades profissionais, recusando eventuais propostas e ficando incomunicável com família, empresário e quase todos os amigos. . Nunca resolveu as pendências judiciais que o cercavam.

Nesses mais de dez anos, o público de Fortaleza teve um único respiro para matar a saudade: seu último show na capital cearense, em 2007, por ocasião do aniversário de 281 anos da cidade. A convite da Prefeitura, Belchior apresentou-se na Praça do Ferreira; na mesma noite, um de seus grandes parceiros e amigos, Ednardo, também tocou no mesmo palco.